Cultura

O projeto educacional de Nietzsche: a busca pela übercultura

Felipe Luiz Gomes Figueira

publicado em 01/03/2010

como www.partes.com.br/cultura/ubercultura.asp

 

“[…] pois o atrevimento do pequeno verme humano é o que há

de mais jocoso e de mais hilariante sobre o palco

terrestre;[….]”.(NIETZSCHE, 1978, p. 286).



Felipe Luiz Gomes Figueira é graduando em História pela Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí (FAFIPA) e Membro Aspirante da Academia de Letras e Artes de Paranavaí. Email: felipe_figueira_@hotmail.com

Resumo: No presente trabalho, abordaremos a questão da cultura nos escritos de Nietzsche, observando em especial que para o filósofo a Alemanha do século XIX vivia uma grande contradição. De um lado, uma miséria cultural e, de outro, a ideia amplamente difundida de que existia uma cultura autêntica. Esse fato reflete em suas obras não apenas na busca por um gênio para modelar a cultura alemã, mas também na profunda intenção de que ele mesmo, Nietzsche, modelasse essa sociedade filistéia.

Palavras-chave: Nietzsche, Cultura, Alemanha do século XIX, História Intelectual


Resumo: In this work, we will discuss the question of culture in Nietzsche’s work, paying special attention that for the philosopher, the 1800´s Germany was living a great contradiction. By one side, the cultural misery, and in the other, the widespread idea in the existence of an authentic culture. This fact is reflected in his works not only in the search of a genius to model the German culture, but also in the deep intention that he, Nietzsche, modeled this philistine society

Key words: Nietzsche, Culture, 1800`s Germany, Intellectual history.


Nietzsche acredita existir na Alemanha do século XIX uma grande contradição: de um lado uma miséria cultural e de outro a ideia completamente difundida de que existe uma cultura autêntica.

Os primeiros escritos de Nietzsche abordam a questão da educação. Neles, o filósofo critica as instituições de ensino de seu tempo, apontando duas tendências em relação à cultura: a inclinação à universalização e a inclinação à especialização. Influenciado pelos seus estudos rigorosos de filologia clássica, Nietzsche tomava a Grécia como modelo ideal de cultura, própria para a formação dos grandes homens.

Nietzsche desenvolveu uma das primeiras críticas filosóficas sobre a cultura de massas, que mais tarde serviram de inspiração tanto para os pensadores de direita, como Heidegger, quanto para os de esquerda, como os membros da Escola de Frankfurt e Foucault. Suas “Considerações Intempestivas” ou “Extemporâneas”1 são críticas profundas contra a educação de seu tempo e consequentemente, contra a educação da modernidade em geral. Dessa forma, o filósofo torna-se grande fonte de posteriores críticas da sociedade e das culturas de massas.

O filósofo via na cultura um elemento central da vida humana. Através dela poderiam criar indivíduos mais fortes, criativos e distintos. No entanto, o modelo de educação da época era o de memorização, no qual o ato de decorar era a forma predominante de se aprender.

A filosofia nietzschiana encontra-se inserida em um tempo e espaço específicos, ela está num contexto histórico preciso, ou seja, ele procura responder às questões do seu tempo e, desse modo, seu pensamento reflete aspectos da conjuntura histórica, cultural e social em que vive. Dessa forma, suas críticas à cultura estão intimamente ligadas à Prússia, que foi a última das potências europeias a implantar a indústria, mas essa implantação não ocorreu de modo lento. Foi o primeiro Estado a propagar um sistema geral de educação e até o final do século XIX já havia erradicado o analfabetismo. A derrota militar para o exército napoleônico ajudou a criar a consciência de que era necessário unificar a nação e a forma que o Estado encontrou para isso foi a educação. Educar torna-se um ideal.

Para Nietzsche, essa é uma visão utilitária da educação, pois visa uma formação quantitativa para o mercado. Com a massificação e universalização da cultura, criam-se também uma quantidade excessiva de estabelecimentos de ensino superior, nos quais o principal objetivo era a formação das massas. Essa cultura massificada contrapõe-se à cultura priorizada por Nietzsche, voltada para o surgimento dos gênios. O Estado, entretanto, percebe que investindo na cultura poderia utilizá-la para os seus fins. Nietzsche acredita ser necessária a educação para a sobrevivência, não nas instituições superiores, mas em escolas técnicas.


O filósofo acredita que os homens superiores devem enriquecer-se reciprocamente, servindo de professores uns aos outros. Denuncia o fato de a Prússia atribuir-se o papel de guia, supervisor e vigilante da cultura, assegurando com isso o devotamento e a obediência por parte dos cidadãos. Encarando a cultura como empresa individual, critica o que chama de ‘cultura de Estado uniformizada’. (Marton; 1993, p.19)


Segundo Nietzsche, aquele que estivesse disposto a lutar pela cultura autêntica deveria preparar-se para a crítica de seus contemporâneos. Por considerar a cultura como orientação desinteressada de qualquer intenção utilitária, critica a venalização da cultura.

Mas onde buscar uma cultura autêntica? Nietzsche vê no filósofo Arthur Schopenhauer e no compositor Richard Wagner as imagens exemplares para modelar a cultura alemã. Schopenhauer e Wagner são homens que poderiam levar às pessoas uma cultura acima de sua época.

Para Nietzsche, Schopenhauer seria o modelo ideal de educador, já que a função do filósofo enquanto educador é promover a ascensão do gênio2. Schopenhauer foi para Nietzsche o modelo de filósofo a romper com o seu tempo por ter sido o avesso da cultura alemã.

A educação moderna, para Nietzsche, havia substituído o autêntico ideal de educadores por uma abstração científica. As instituições superiores haviam feito da ciência algo desvinculado da própria vida, fazendo com que os eruditos, ou “filisteus da cultura”3, tornassem-se mais interessados na ciência do que na humanidade, esquecendo que sua autêntica tarefa era de educar o homem.

Diante das questões das humanidades, a ciência se cala perdida em abstrações, transformando toda a complexidade da existência num problema conceitual de lei ou de investigação. O cientista, segundo Nietzsche, não revitaliza a vida, mas a reduz em generalizações. Esses são alguns elementos que segundo o filósofo inibem o aparecimento do gênio. “O que há de ser, em geral, a ciência, se não tem tempo para a civilização? Respondei-nos, pelo menos aqui: de onde, pra onde, para que toda a ciência, se não for para elevar à civilização? Ora, talvez então à barbárie! E nessa direção vemos já a comunidade erudita pavorosamente avançada…” (NIETZSCHE; 2004, p.193)

Nietzsche almeja criar, por si próprio, os pilares filosóficos para uma nova cultura que revitalizaria a Alemanha e, realizando estudos sobre filologia grega, acredita que forneceria os elementos essenciais para uma cultura afirmadora, da qual surgiria o indivíduo superior. O que ocorre, porém, é que para a maioria da sociedade a cultura não existe para preconizar o indivíduo superior, mas para atender aos interesses de determinados grupos.

Ele se afastou da busca por uma nova cultura alemã embasada nos dramas musicais de Wagner, na medida em que esse visava à cultura de massas em suas músicas e publicou uma série de textos que buscavam ao esclarecimento intelectual e uma crítica social, começando por Humano, Demasiado Humano (1878).

Nietzsche observou a supremacia da cultura de massas como fonte de degradação do pensamento e da educação européia de seu tempo. A cultura era direcionada para o consumo. Deveria ser rápida, para formar o mais rápido possível pessoas para produzirem e consumirem, pois no consumo está à própria felicidade, “não se atribui ao homem senão justamente o que é preciso de cultura no interesse do lucro geral e do comércio mundial” (Nietzsche; 2004, 186).

A crítica de Nietzsche ao Estado está ligada a sua crítica à cultura e à sociedade de massas, que ele vê como homogeneizadoras e inibidoras do gênio criativo. Para Nietzsche, o Estado e a cultura de massa eram inimigos da educação. Dessa forma, o Estado incentiva a difusão da cultura unicamente para servir-se dela.

As instituições aparentemente motivadoras da cultura, em sua essência, nada entendem de cultura, agindo apenas por interesse. O filisteu da cultura com sua ação não permite o surgimento do gênio, já que para ele a cultura é apenas utilitária e grandes homens atrapalhariam sua mediocridade.


Nietzsche entende que os ‘filisteus da cultura’ representam o contrário dos homens verdadeiramente cultos. Incapazes de criar, limitam-se à imitação e ao consumo. Mas, em toda parte, deixam sua marca; organizam as instituições artísticas e os estabelecimentos de ensino. Por obra deles, a cultura torna-se venal. Objeto de possíveis relações comerciais, submetem-se às leis que regem a compra e a venda. Produto a ser consumido, deve ter uma etiqueta e um preço. Transformada em mercadoria, converte-se em máscara, engodo. (Marton, 1993, p. 18)


Para Nietzsche, a cultura respondia a uma hierarquia (Rankordnung), que estabelecia valores altos e baixos. O filósofo clama por uma reavaliação dos valores, pois se revisando os ideais promover-se-ia o surgimento de indivíduos mais fortes. Seu super-homem (Übermensch) é, portanto, um indivíduo distinto que ultrapassa os valores decadentes da cultura.

A verdadeira arte foi valorizada por Nietzsche principalmente porque ela cultivava a imaginação e outros elementos da mente e do corpo, admitindo aos indivíduos entrarem em um controle que transcendia a moralidade tradicional e as regras sociais. Nietzsche defendia que a arte era a mais poderosa rival do ideal ascético e a última alternativa da vitalidade cultural. A crise da cultura moderna está relacionada parcialmente com o fato de que as sensibilidades estéticas têm sido inibidas pelo uso excessivo da racionalidade instrumental. Assim, a arte tem sido relegada às margens da sociedade. Espíritos livres seriam importantes àqueles que quisessem experimentar a arte e a vida e também àqueles que pretendessem transvalorar os valores e criar uma cultura superior apta a produzir homens mais evoluídos.

As instituições de seu tempo tinham o dever de formar o funcionário do Estado, o “filisteu da cultura”, esquecendo-se de preparar o surgimento do gênio. Mas qual instituição de ensino poderia promover a vinda do gênio? O filósofo não esclarece de maneira objetiva esta questão, e após dez anos lecionando, deixa sua cátedra e passa a ser um filósofo errante.


Referências Bibliográficas

NIETZSCHE, F. W.. Escritos sobre Educação; Tradução de Neoli Correia de Melo Sobrinho. Rio de Janeiro: Ed. PUC- Rio;São Paulo: Loyola, 2004

__________________. Obras incompletas. Seleção de textos de Gérard Lebrun; tradução e notas de Rubens Rodrigues Torres Filho; posfácio de Antônio Cândido de Mello e Souza. 2ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978 (Os Pensadores).

__________________. Crepúsculos dos Ídolos ou como filosofar a marteladas. Tradução de Carlos Antônio Braga; São Paulo: Escala, 2005

MARTON, Scarlett. Nietzsche: a transvaloração dos valores; São Paulo: Moderna, 1993

Graduando em História pela Faculdade Estadual de Educação, Ciências e Letras de Paranavaí (FAFIPA) e Membro Aspirante da Academia de Letras e Artes de Paranavaí. Email: felipe_figueira_@hotmail.com

1 São elas: David Strauss, o devoto e o escritor (1873), Da utilidade e desvantagem da história para a vida (1874), Schopenhauer como educador (1874) e Richard Wagner em Bayreuth (1876).

2 “Meu conceito de gênio – Os grandes homens são como as grandes épocas, matérias explosivas, imensas acumulações de forças. […] Quanto a tensão para se chamar a cena do mundo o gênio, para chamá-lo a ação e aos grandes destinos […] Entre o gênio e seu tempo existe a relação que existe entre o forte e o fraco, entre o jovem e o velho. (Crepúsculos dos ídolos, Incursões de um extemporâneo, §44)

3 “O termo ‘filisteu’, que já aparece na Bíblia, passou a ser empregado no século XVIII, nos meios universitários alemães, para designar os estritos cumpridores das leis e dedicados executores dos deveres que execravam a liberdade gozada pelos estudantes. Personagem do bom senso, inculta em questões de arte e crédula na ordem natural das coisas, o ‘filisteu’ recorria ao mesmo raciocínio para tratar das riquezas mundanas e das culturais. O poeta Heine diria que ele pesava, na sua balança de queijos, ‘o próprio gênio, a chama e o imponderável’. Ao formular a expressão ‘filisteus da cultura’, é nessa mesma direção que Nietzsche caminha”.(Marton; 1993, p.18)

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