Aparecida Luzia de Mello*
publicado em 18/01/2010
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Foi logo após o almoço de Ano Novo, com a mesa farta e a família reunida que, sem querer, começou o jogo da memória.
Alguém falou sobre o antigo sabonete “Vale Quanto Pesa”. Este era o sabonete da família. Seu preço era acessível, seu tamanho – enorme – todavia ao lembrar seu cheiro horrível, as filhas torceram o nariz.
Palmolive, Gessy, Eucalol, Phebo foram lembrados como produtos de consumo dos ricos, devido a propaganda, o mais desejado entre eles era o “Lever – o preferido por 9 entre 10 estrelas do cinema”. Porém nenhum deles fez parte da história da família, pelo menos naquela época.
O assunto correu para os produtos de tratamento de cabelos da marca Vinólia que chegaram ao Brasil por volta dos anos 60, mas a família nem chegou a conhecer, usavam o sabão de coco mesmo, quando tinha, porque não havia recursos para estes luxos. O shampoo e creme rinse da marca Colorama, usados pela matriarca, surgiram na década de 80, ainda hoje é o preferido dela, embora reclame da dificuldade de achar.
Rapidamente alguém lembrou que enquanto o pai, por muitos anos, pagava uma mensalidade para no final de cada ano receber em casa uma cesta de natal – Cesta de Natal Amaral, que fazia a alegria da criançada, a mãe pagava o carne do Baú, e como nunca foi premiada ao final trocava o valor por produtos “de luxo”, mais caros do que na concorrência, numa das lojas da rede.
Era assim que a mãe tinha alguns mimos como o – Pó de Arroz Cashmere Bouquet, o creme Antisardina e meias de seda. Entre risadas a filha mais velha contou que, escondido, usava o único creme da mãe, embora não tivesse idade para tal, pois ficava deslumbrada ao ver o potinho verde cheio de creme cor de rosa, por isto vivia com a pele irritada.
Neste momento a matriarca, rodeada dos filhos, netos e bisnetos, emocionada, lembrou-se mais uma vez do natal do porco.
Ano de 1960, aquele seria um natal magro, sem Cesta, sem Baú, sem a carne de segunda comprada nas festas e o tradicional Guaraná Champagne Antártica – este era comprado só no natal e na páscoa. Era apenas uma garrafa para cada um, as crianças, com um prego furavam a tampa e passavam o dia “mamando” na garrafa, gota por gota para que demorasse a acabar.
Tudo estava fora do orçamento naquele ano, ela estava inconformada. Aquele natal seria mais magro do que já era normalmente.
Presentes nunca havia, o Conga, calçado da época, passava longe dos pés dos filhos, as toalhas de banho eram feitas de saco de farinha com as pontas amarradas formando um desenho cheio de losangos e as colchas, para as camas, de retalhos emendados manualmente pela avó cega. O sonho de consumo das crianças era o jogo de varetas e o jogo de tômbola que nunca foi consumado.
Tudo ela aceitava, mas aquilo era demais, naquele natal até a dispensa estava vazia. Ela, o marido, três filhos pequenos e a sogra, comeriam arroz e feijão com o costumeiro “mato” que era colhido na horta da modesta casa alugada.
Todavia o destino queria que fosse diferente. Naquela tarde antevéspera de natal, eis que alguns porcos ultrapassaram a cerca de arame farpado e o bambuzal, que dividia os terrenos vizinhos, em busca de comida e pisotearam a horta que iria garantir a frugal ceia de natal da família.
A mulher desesperada coloca as crianças para dentro de casa, apodera-se de uma pedra e correndo atira-a na direção dos porcos com a intenção de assustá-los tentando evitar que sua plantação fosse dizimada. A pedrada foi direta. Acertou a cabeça do maior porco entre eles, que caiu morto instantaneamente. O porco não fez nenhum barulho, simplesmente… caiu morto!
Contrariamente ao esperado, ou seja, ao invés de agradecer a Deus o “banquete inesperado”, ela, com medo de ser cobrada pelo dono do porco, mesmo sem saber a quem pertencia, sem dinheiro para pagar o prejuízo que acreditava ter causado, acreditando que poderia ser presa, decidiu enterrar o porco. Pegou uma picareta e começou a cavar.
O dono do imóvel ao ver sua aflição em abrir um buraco de proporções avantajadas para plantar alguma semente e inteirar-se do assunto, começou a rir e a impediu de desperdiçar o banquete divino, ajudando-a a pelar e recortar o animal em pedaços generosos garantindo um natal a ano novo fartos, pelo menos de carne de porco, para sua família e de alguns vizinhos que sofriam as mesmas privações.
Dizem, os místicos, que nas festas de final de ano deve-se comer peixe para ir para frente ou porco para garantir a fartura, como o porco fuça para frente, garante armários cheios por todo o ano, coincidência ou não aquele foi o último natal e ano novo magros da família.
Depois de tantos anos, foi com sorriso no rosto, já enrugado, que ela comentou:
-: aquele foi o porquinho da sorte, nunca mais faltou nada em casa e hoje somos nós que garantimos “porquinhos” para algumas famílias. Abençoado seja aquele porquinho!
* Advogada, Mestre em Políticas Sociais, Pós-Graduada em Gestão e Organização do 3º Setor, Psicogerontologia e Memórias. Palestrante, professora, dirige o PEEM Ponto de Encontro e Estudo da Maturidade, voluntária da 3ª Idade e Recanto do Idoso Nosso Lar.
Email: cidamell@uol.com.br
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