Vitor Antenore Rossi1 Marcos Ricardo Datti Micheletto2
publicado em 05/01/2010 como <www.partes.com.br/emquestao/mecanismoneurotico.asp>
RESUMO
É importante se considerar as influências da família nos processos psíquicos de uma cliente, a forma como atuam no comportamento e a necessidade de investigação de observações feitas pela cliente durante sua infância, sem preocupação com traumas, mas sim com a posterior repetição de comportamentos e pensamentos efetivados pela mesma. O mecanismo neurótico da Confluência é discutido como forma de explicar a interação com o meio de uma mulher de 29 anos cujas características apresentam similaridade com a sua avó.
Palavras-chave: Mecanismo neurótico, Confluência, Padrão de repetição familiar.
ABSTRACT
It is important to consider the influences of the family in the psychic processes of a client, the form as the behavior and the necessity of inquiry of comments made for the client act in its infancy, without concern with traumas, but, with the posterior repetition of behaviors and thoughts accomplished for the same one. The mechanism neurotic of the Confluence is argued as form to explain the interaction with the field of a woman of 29 years old whose characteristics present similarity with its grandmother.
Key-words: Neurotic mechanism. Confluence. Standard of familiar repetition
1 INTRODUÇÃO
Gestalt-Terapia é uma abordagem psicoterapêutica com caráter experiencial que visa o desenvolvimento do contato e da awareness, dando especial atenção à relação terapêutica e às formas de interrupção do fluxo de contato do cliente. Segundo Casarin3 (2007), awareness é uma função semelhante à função do pensamento, que veicula informação à inteligência.
Stevens (1977) relatou que a ênfase da Gestalt-terapia está na totalidade da experiência, no que ela é e no que poderá ser. Visa explorar novas possibilidades de comportamento. Embora o foco do processo terapêutico seja o presente, a experiência passada tem sua importância a partir da forma como afeta o “agora”, surgindo como situações inacabadas, estrutura de caráter e formas de ser no mundo.
No que diz respeito à atuação profissional, Yontef (1998), expôs que o gestalt-terapeuta trabalha com estes elementos no aqui-agora criando condições para o cliente “dar-se conta” dos mesmos, experimentando novas possibilidades, reconfigurando sua existência. Aprendendo a acompanhar o seu próprio processo, o cliente poderá apropriar-se e apreciar a totalidade do seu ser, permitindo-se assim escolher e desenvolver seus próprios caminhos. Essa possibilidade de escolha é uma condição humana básica defendida pelo existencialismo e pela fenomenologia
O autor supracitado definiu a fenomenologia como “busca de entendimento, baseada no que é óbvio ou revelado pela situação e não na interpretação do observador.” Ou seja, não leva em conta o cabedal de percepções estereotipadas do observador, mas, as maneiras como as coisas estão dispostas diante dele e nas possibilidades que essa disposição lhe oferece.
O princípio da fenomenologia influencia a Gestalt-terapia, pois esta tem como principal foco aquilo que aparece (o fenômeno), ou seja, o aqui-agora e as possibilidades de intervenção que esse momento permite. Com destaque àqueles terapeutas que possuam o maior número de técnicas e métodos conhecidos, além de boa criatividade para aproveitar de forma mais otimizada as próprias coisas que se mostram diante dele.
Juliano (1999) definiu a Gestalt-terapia como uma metodologia que valoriza principalmente as posturas tomadas diante da vida, os contatos com o mundo e com a pessoa do outro, na sua singularidade, sem pré-concepções de qualquer ordem.
O homem necessita de contato com outras pessoas, a probabilidade de um ser humano sobreviver por conta própria sem interação com outras pessoas é praticamente nula. A escola Gestáltica considera o comportamento como um reflexo da ligação campo/meio onde se encontra inserido o indivíduo. Nesse senti, a neurose surge quando o indivíduo torna-se incapaz de alterar suas técnicas de manipulação e interação com o meio. A saúde está na fluidez, na homeostase em ação, assim, no contato com o mundo (objetos do mundo), o ser pode se fazer crescer.
Segundo Perls (1988), quando o indivíduo não sente nenhuma barreira entre ele e seu meio, quando sente que ele e o meio são um, então ele está em confluência com esse meio, não há como distinguir as partes do todo nesses casos.
“O confluente não consegue diferenciar aquilo que ele próprio é daquilo que os outros são, não consegue se relacionar bem e ao mesmo tempo não suporta se ver sozinho em contato social. O indivíduo amarra suas necessidades e emoções num amontoado de completa confusão até que não mais se dá conta do que quer fazer e de como está se impedindo de fazê-lo, exigindo que os outros sejam como ele, não tolerando diferenças.” (PERLS, 1988).
Koffka (1975) exemplificou a confluência como aquela situação em que uma determinada pessoa sentir-se-á deslocada quando está em traje de gala, enquanto outros estão vestindo roupas de passeio. Ainda que o contraste social permita, a pessoa se sente deslocada.
A hipótese deste artigo é a de que existe confluência neurótica entre o indivíduo e sua família. A confluência neurótica poderá ser entre irmãos-irmãos, pais-filhos, e avós-netos, entre outros. Diante deste mecanismo a repetição de padrões familiares se torna possível, mesmo entre gerações distantes.
Na abordagem sistêmica o processo de lealdade parental ajuda a explicar a repetição intergeracional, (BOSZORMENYI-NAG & SPARK,1983). Se isto fosse transposto para a abordagem gestáltica a manifestação do padrão de repetição se daria pelo mecanismo da confluência. Por ser este um raciocínio de comparação ousado, não se pretende com um simples relato de caso formar uma base para confirmar ou desconfirmar essa hipótese ou essa comparação. A intenção é mais no sentido de fomentar um debate, uma discussão por meio de exemplos de trechos retirados de um caso clínico atendido por um psicoterapeuta gestáltico em início de treinamento.
A intenção primordial é contribuir da melhor forma possível para que o estudo do caso sirva como exemplo para análises posteriores a respeito da veracidade da comparação.
Bert Hellinger & Hovël (2007), ao proporem um modelo chamado “constelações familiares” citam que de forma inconsciente um membro da família pode repetir o destino de outro, seja por lealdade ou para evitar que outro membro tenha que passar por isso. Em suas palavras,
“Nas famílias existe a possibilidade de que a criança queira repetir o destino de um irmão ou irmã falecida, ou da mãe falecida ou do pai falecido. A criança diz em seu íntimo: “Eu irei com você”.” (HELLINGER & HÖVEL, 2007 p.22).
O mecanismo de confluência é debatido neste artigo por meio do exemplo da confluência parental entre neta e avó paterna. É apontada a dificuldade da neta em discriminar suas ações e emoções das de sua avó. Também são consideradas as vivências da infância da cliente, trazidas ao aqui-agora por meio de técnicas e experimentos da Gestalt-terapia.
1.1 Objetivo
Esse trabalho teve como objetivo apresentar um relato de caso atendido na abordagem gestáltica que analisou a dificuldade de uma cliente em se desvencilhar dos padrões emocionais e comportamentais de sua avó paterna, tendo como explicação o mecanismo neurótico da confluência.
2 MÉTODO
2.1 Descrição sócio-demográfica do caso
Trata-se do caso de uma cliente (J.M.) do sexo feminino, com 29 anos de idade, solteira, com o segundo grau completo, que reside com a mãe e tem como vizinhos o irmão e a cunhada, em uma cidade de médio porte do interior do Estado de São Paulo. Trabalha em um restaurante universitário. Os pais se separaram há 18 anos e a mãe tem um namorado.
2.2 Descrição da queixa
Procurou espontaneamente o atendimento psicológico na clínica-escola. Referiu sofrer de depressão devido ao rompimento do último namoro. Não tem bom relacionamento com seus familiares. Foram realizadas 14 sessões individuais.
2.3 Técnicas e estratégias aplicadas
– Curtigrama; (MAHL, SOARES & OLIVEIRA NETO, 2005): Consiste me pedir ao cliente que responda a quatro tópicos com cinco respostas para cada um. Os tópicos são: Curto e faço; Curto e não faço; Não curto e faço e Não curto e não faço. O objetivo é analisar o nível de satisfação do cliente com sua vida. Fazê-lo pensar sobre suas atitudes e por si próprio iniciar um processo de autoconhecimento.
– Viagem ao bosque; (YOZO, 1996): Relaxamento indutivo que visa fazer o cliente imaginar ou tentar visualizar o que o terapeuta vai comandando.
– Relaxamento; (LIPP, 2005): exercício para acalmar e tranquilizar em momentos de tensão como o processo terapêutico. Consiste em fazer com que o indivíduo aprenda a respirar profundamente com o diafragma, não mais pelos pulmões somente, movimentando o abdômen não o tórax. Expirar e inspirar o ar com tempos de 5 a 7 segundos
– Feedback; (MOSCOVICI apud ARAÚJO, 2002): O feedback ajuda na mudança de comportamento, fornecendo a uma pessoa ou grupo, informando sobre suas ações que estão interferindo nas ações de outras pessoas. Sendo eficaz, o feedback ajuda a quem o recebe a melhorar o seu desempenho a fim de alcançar seus objetivos.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
1ª Sessão
A cliente alegou estar sofrendo de depressão há cerca de quatro anos e apontou como causa as eventualidades ocorridas em seu último namoro que durou três anos. Nesse período (2002 a 2005) ocorreram várias separações e reconciliações sendo que no momento da primeira sessão ela estava separada dele há dois anos, sendo que há um ano e meio excluiu todo o tipo de contato com o ex-namorado.
J.M. contou que ele a reprimia muito, não permitia que ela externalizasse seus pensamentos e emoções e sempre a criticava, “ele me chamava de fofoqueira”. Além de possivelmente tê-la traído, fato que ela não chegou a presenciar, mas que foi contado por amigos após o fim da relação.
A cliente disse que não se expressa por medo do que vai ouvir e por esse motivo prefere se expressar de forma não-verbal através de gestos, sons e caretas.
J.M. disse que seu humor varia de quinze em quinze dias, em média. Nunca pensou em suicídio, mas já teve uma crise existencial: “eu queria saber quem eu era, porque estava aqui”.
Atualmente, J.M. vive com a mãe e seu irmão mora com a esposa nos fundos da casa. Ela não se dá bem com ambos, e não conversa com a cunhada há um ano devido desentendimentos.
J.M. disse que anda irritada com o namorado da mãe, pois o mesmo liga para ela “umas dez vezes por dia” e a leva para sair. Questionada pelo terapeuta sobre isso J.M. acabou por refazer sua fala dizendo que não era raiva e nem ciúme da mãe, mas que poderia ser inveja dela, pois ela não está namorando, está solteira.
Os pais de J.M. se separaram quando ela tinha onze anos e ela disse que o pai não era bom, “ele era bruto e chegou a dizer que se pudesse me matava e me jogava no rio”. Atualmente ela não vê o pai há cinco anos, e não aceitou bem a separação dos pais na época em que ocorreu.
Segundo Piaget (1976), o desenvolvimento de mecanismos mentais na criança é o que melhor explica o funcionamento desses mecanismos presentes na vida adulta. Baseando-se nesse fundamento, durante o processo terapêutico, foram elaboradas diversas perguntas que pudessem trazer dados vividos pela cliente para o momento da sessão.
J.M. disse ainda que repete alguns comportamentos do pai e que não tem paciência de explicar duas vezes a mesma coisa, se irrita quando não conseguem realizar tarefas que ela já sabe e acaba sendo grosseira.
Durante a primeira sessão as tendências a repetir alguns comportamentos do pai apareceram na fala da cliente. O desejo de viver um relacionamento como o da mãe também enaltece o tema da repetição. Pode-se notar que inicialmente a cliente culpou o ex-namorado pela impossibilidade em expressar suas emoções, mas posteriormente, ao dizer que não se expressa por medo do que vai ouvir evidenciou uma dificuldade sua em estabelecer os limites de fronteira entre e diferenciar-se do meio.
Mira y López (1974), referiu que a fronteira entre a percepção e a afeição, a sensação e o sentimento, o saber e o sentir, é a mesma que aparece entre o eu e o não-eu. Esses dados sustentam que desde o início deste processo terapêutico houve necessidade de se realizar um trabalho focado sobre o limite de contato desta cliente.
Perls (1988) escreveu que todo indivíduo só pode existir num campo circundante. Nem todo contato é saudável e nem toda fuga doentia. O neurótico não consegue fazer um contato saudável com o campo, tendo dificuldades também em organizar fugas. A mente do neurótico está distante do contato com seu meio impedindo com isso a concentração dele nas questões de maior relevância no aspecto emocional. Esse indivíduo perdeu a liberdade de escolha, pois não tem a capacidade de ver as opções que se abrem diante dele.
Outro dado importante refere-se à fala da cliente no que diz respeito à não tolerar pessoas que não conseguem realizar tarefas facilmente realizáveis por ela. Essa fala passará a ter relevância muito importante nas sessões que virão a seguir, pois indica o frágil limite que a separa do meio, ou seja, o funcionamento do mecanismo neurótico da confluência.
2ª Sessão A sessão teve início com a cliente reclamando dos conflitos interpessoais em seu emprego, pois acredita que tem trabalhado mais que os outros funcionários, “eu trabalho por três, porque sempre tem aqueles lerdos”.
J.M. relatou que seu pai nunca teve paciência com ela. Quando criança era tratada por ele como adulta. Ele dava ordens sem explicar as razões e cobrava muito dela. Relatou que os pais eram infiéis, “eu ouvia gemidos quando meu pai viajava” e, relatou também, já ter presenciado seu pai agredindo sua mãe fisicamente quando criança.
A cliente demonstrou necessidade em manter-se no controle das situações, tem dificuldade em lidar com o silêncio em situações sociais e sempre toma a iniciativa em tais momentos. Novamente, isso merece atenção especial, pois é um dado que será de extrema importância no entendimento das sessões futuras.
Nota-se a inclinação da cliente em repetir os comportamentos do pai, deixando claro uma maior tendência à vinculação com lado paterno da família no que diz respeito a ser impaciente com alguém que não possui as mesmas condições psíquicas ou intelectuais que ela, aparentes nas relações com as pessoas que convivem com ela em seu ambiente de trabalho.
J.M. acaba por manter uma postura de isolamento com relação às outras pessoas, acreditando que a presença do outro não é essencial, pois para suportá-la ela teria que aceitar as dificuldades do outro na realização de algumas tarefas. Esse isolamento causa desequilíbrio e conflitos emocionais na cliente, que ao mesmo tempo sente solidão e irritação com as pessoas próximas a ela. Wertheimer (2002) referiu argumentos que podem dar respaldo a essa hipótese,
“Apenas em circunstâncias muito particulares um “Eu” se destaca sozinho. Então, o equilíbrio obtido no decorrer de uma harmoniosa e sistemática ocupação pode ser perturbado e dar lugar a um novo equilíbrio substituto, (em certas condições, patológico)” (WERTHEIMER, 2002 p. 308).
3ª Sessão
J.M. contou que suas colegas de trabalho começaram “por brincadeira”, a lhe chamar de “gerente” e, após algumas falas, a própria cliente aceitou a idéia de que talvez não seja brincadeira e que sua imagem é forte dentro o restaurante. Tal fato incomodou J.M. que se percebeu como uma gerente, mas que recebe como funcionária comum.
Mediante esse relato, o terapeuta forneceu um feedback à cliente, mostrando a ela a irrelevância de se preocupar com problemas de ordem administrativa, já que essa não era função dela, pois, agindo dessa forma, ela acabava sendo sobrecarregada de funções pelos patrões e discriminada pelos outros funcionários sem receber nenhum benefício a mais por isso.
A cliente relatou que tentaria não cuidar das funções dos outros, por mais que fosse difícil ver algo não realizado ela faria o possível para não mudar a situação, deixando para cada um a responsabilidade por elogios ou reclamações.
Novamente é necessário prestar a atenção na necessidade de controlar a situação por parte da cliente, uma característica que começou a ficar muito forte em sua verbalização e passou a tornar-se figura do processo terapêutico. O fato de realizar tarefas que não eram suas a deixava sempre preocupada em vigiar e tomar conta das atitudes dos outros funcionários, desgastando com isso sua mente e seu corpo.
Dispensar energia em coisas que não era de sua alçada estava sendo prejudicial para J.M. uma vez que todo o esforço em manter o ambiente de trabalho organizado não era compartilhado pelos outros funcionários e nem reconhecido pelos patrões. A necessidade em estar no controle da situação tirava as energias de L.M. impedindo que ela conseguisse realizar projetos pessoais, e diante dessa postura o terapeuta propôs a ela que tentasse manter uma atitude voltada para as suas necessidades pessoais, realizando em sua profissão apenas as tarefas referentes à sua função,
“Mas, depois de ter jogado com todas as possibilidades, quanta energia me resta para poder agir? Se, pelo contrário, procedo fenomenologicamente e, de repente, vejo e identifico o essencial, tenho força e espaço para agir. Dentro desse espaço eu me sinto livre.” (HELLINGER & HÖVEL, 2007 p. 35).
4ª Sessão
Sobre seu trabalho, J.M. disse que “a carga de trabalho diminuiu, não tenho mais realizado o trabalho dos outros”, e isso “tirou um peso das minhas costas”.
Perguntada pelo terapeuta sobre os motivos de sua separação no último namoro, J.M. contou que seu namorado a chamava de “mandona” e, que o namorado anterior a ele a chamava de “grossa e sem educação”. Esses dados foram aproveitados por ela própria em sua percepção de intolerância com as outras pessoas. Ou seja, um experimento de ampliação da consciência.
J.M. relatou que havia muito conflito em seus relacionamentos, e que dificilmente ela agia de forma sincera, pois sempre pensava qual seria a melhor forma de agir em cada situação, abrindo mão de sua espontaneidade em função do medo de ser rejeitada. Perls (1997) mostrou como um passado conflitivo contribui para uma atuação livre de espontaneidade,
[…] “Já perdemos de maneira importante e fomos humilhados, e não assimilamos a derrota, […] assim, toda relação interpessoal, e na verdade, toda experiência, é transformada numa pequena batalha, com a possibilidade de vencer e mostrar bravura.” (PERLS, 1997 p. 160).
L. citou a separação dos pais como fato marcante em seu “fechamento para o mundo” (sic), pois tem medo de ser traída, de ser deixada, enfim, de seguir o mesmo caminho que seus pais seguiram, “tenho medo de repetir a história da minha mãe” (sic).
Novamente o medo e a tendência em vincular a sua história com a dos pais fica evidente, dessa vez tendo sido citada a mãe, mas sem muita relevância uma vez que segundo a própria cliente em relato anterior a mãe também traía o pai quando esse viajava. Sendo assim, o que se deve ressaltar é o medo da traição no casamento, fato marcante na relação dos pais.
6ª Sessão
L.M. reclamou de seu atual emprego, salientando vários aspectos como: carga horária, remuneração, relacionamento com outros funcionários e descaso dos patrões. Diante dessa insatisfação demonstrada, foi perguntado a J.M. se sua vida estava como ela gostaria, como ela planejou no passado e, após refutar e ficar com os olhos marejados ela disse que não. Disse que deveria ter estudado mais quando era mais nova e que não fez isso por ser muito preguiçosa.
Pimentel (2003) ressaltou que a pessoa que não estabelece escolhas pessoais, não influencia o próprio meio, e acaba por permitir que o medo do novo e do diferente reduza o limite entre o “eu” e o outro criando com isso um modo defensivo confluente. Sendo assim, J.M. mostrava dificuldades em definir o seu limite de contato já que a fala dela demonstrava impossibilidade de mudanças como se ela não tivesse mais chances de refazer sua vida, fato que não se confirmava, pois a cliente possuía todas as ferramentas viáveis para voltar a planejar seus caminhos.
Foi proposto a J.M. que ela se imaginasse com 40 anos e que a partir disso pudesse fazer novos planos e dessa vez levá-los a cabo uma vez que começar uma nova atividade exige treino e dedicação.
J.M. se animou, disse que “nunca tinha pensado assim antes”, e que tentaria voltar aos estudos, aos poucos com pequenas leituras, de maneira que pudesse se acostumar novamente e com isso dar a si mesma uma nova chance, a chance de se enxergar em um espaço novo em sua vida, um espaço onde ela realmente gostaria de estar.
O dado importante trazido por J.M. nessa sessão foi a sua insatisfação pessoal, sua dúvida a respeito do caminho que está seguindo, a sensação de não estar no lugar que gostaria, de não estar cumprindo a sua história e sim uma outra estranha a ela.
Ao se imaginar com 40 anos, J.M. entrou em contato com sua insatisfação, percebendo seu “comodismo”, sua zona de conforto. Lewin (1992) postulou um estado de equilíbrio entre a pessoa e o ambiente, denotando que, quando esse equilíbrio é perturbado, há o surgimento de uma tensão que leva a um movimento numa tentativa de restaurar o equilíbrio perdido. Esse dado foi observado na verbalização da cliente ao dizer que gostaria de mudar sua vida de alguma forma.
7ª Sessão
Com respeito ao seu trabalho, J.M. disse que foi grosseira com uma colega porque estava nervosa e após perceber que estava errada foi pedir desculpas para ela: “não sou de pedir desculpas, o orgulho não deixa”. Ficou dez minutos se sentindo mal após ter feito esse pedido devido ao arrependimento por ter agido com grosseria.
Contou que no sábado sentiu angústia e vontade de chorar por cinco minutos devido a uma “crise existencial” que não pode ser mais bem explicada: “tá muito cedo ainda pra eu te falar”.
Relatou que depois que começou a terapia tem se sentido mais feliz e tem conseguido administrar melhor os seus conflitos e suas dores, além de conseguir em algumas situações controlar sua agressividade.
Fica evidente novamente a dificuldade da cliente em relatar processos internos seus, no entanto há grande facilidade em conversar sobre os pais e os outros, quanto a si mesma, mostrou incapacidade em manifestar de forma verbal e compreensível suas emoções. Uma indicação de mecanismo neurótico confluente em processo.
9ª Sessão
Baseado nas dificuldades de relacionamento e no fato de que J.M. aos 29 anos já teria condições econômicas de morar sozinha e sair da casa da mãe, foi realizada a aplicação da técnica “viagem ao bosque” (YOZO, 1996) com algumas modificações. Foi escolhida com o intuito de visualizar as razões pelas quais J.M. ainda não consegue sair de casa.
Foi proposto que J.M. deitasse na poltrona de relaxamento e foi realizado um relaxamento inicial de cinco minutos. Foi proposto que ela se imaginasse em uma floresta, observasse a flora e a fauna. Foi pedido que ela adicionasse um rio às margens dessa floresta e que caminhasse até ele, e que ao chegar à margem observasse como era essa rio, a cor e transparência da água, o clima do local, a luz, sons, todos os detalhes que pudesse captar. Em seguida, foi requisitado que ela visualizasse uma cachoeira e posteriormente transpassasse essa queda D’água, adentrando assim em uma gruta que até então estava escondida. Dentro da gruta ela deveria procurar uma pessoa que provavelmente estaria ali, e em seguida perceber que sentimentos surgiriam e como estava o ambiente. Após o contato com essa pessoa, foi proposto que ela voltasse à margem do rio e que em seguida voltasse lentamente a prestar atenção ao seu corpo e voltasse sua consciência para a sala de atendimento.
A técnica evidenciou o medo de J.M. com relação ao desconhecido, além de carência afetiva no que diz respeito a um relacionamento homem-mulher. Perls (1977) referiu que quando uma pessoa não quer assumir a responsabilidade pela pessoa adulta, ela racionaliza e se apega às memórias da infância porque crescer significa estar só, e isso é pré-requisito para maturidade e contato.
J.M. se conscientizou que antes acreditava não sair de casa por medo de deixar a mãe sozinha, mas, sua mãe não vê problemas nisso segundo ela. Supõe-se então que quem realmente sente incômodo em ficar sozinha é J.M. que por esse motivo não sente que tem vida própria, não encontra seu lugar na vida, e tal vazio faz com que, às vezes, ela sinta “vontade de pegar um ônibus e sair sem rumo, sem lugar para descer”.
J.M. considerou que se tivesse um emprego fixo sairia de casa. Quando questionada sobre como foi sua situação nos últimos cinco anos, respondeu que ficou apenas três meses desempregada, percebendo por si mesma que esse tal emprego fixo já existe e que a insegurança em sair não é financeira e sim de suas fantasias.
Perls (1977) relatou que o indivíduo tortura a si mesmo e a seu ambiente ficando parado e que, essa tortura torna-se uma experiência positiva quando aceita pelo indivíduo. J.M. percebeu que aceitava sua condição e não procurava mudar. Conscientizou-se do quanto estava sofrendo com essa postura, pois de alguma forma, estava esperando que as mudanças na sua vida viessem naturalmente, criando uma esperança fantasiosa que embasava seu “comodismo”.
12ª Sessão
Neste encontro J.M. começou a falar de sua angústia que aparecia sempre próximo às 18h, ou mais especificamente durante o crepúsculo.
Reclamou a respeito de sua mãe ainda tratá-la como adolescente dizendo que ela sempre “pegou no seu pé”, desde criança.
Foi iniciada a técnica “Curtograma” (MAHL, SOARES e NETO, 2005) com a cliente e durante a aplicação ficou evidente a dificuldade da mesma em relatar coisas que não gosta e não faz, ou seja, mostrou dificuldade em perceber as fronteiras e um baixo autoconhecimento.
O terapeuta lhe deu um feedback relativo às suas respostas e ao final disso a cliente pode perceber que tem grande dificuldade em olhar para suas vontades, pensar sobre coisas que realmente gosta e realizar aquilo que colocou como desejável, mas não era praticado, fosse por preguiça ou por falta de condições financeiras.
J.M. foi solicitada a pensar sobre uma possível mudança em sua vida profissional, buscar informações a respeito de cursos que possam lhe abrir novas possibilidades de trabalhar em algo que realmente a deixe satisfeita.
Essa sessão teve caráter marcante, pois a partir desse encontro a cliente passou a direcionar seus pensamentos e intuições para sua condição atual, deixando mais a fundo as razões do passado, as atuações dos pais e fazendo de figura o seu futuro. No que diz respeito às expressões físicas, ficou evidente um “acordar” por parte da cliente, que saiu da sala com o queixo erguido e um sorriso que até então não havia aparecido no processo terapêutico.
13ª Sessão
J.M. entrou para a sessão manifestando insatisfação com seu emprego e com sua vida de forma geral dizendo que a angústia que antes se resumia ao crepúsculo agora está presente quando falta menos de duas horas para ela ir trabalhar e só termina quando vai dormir.
Foi realizada pelo terapeuta uma técnica de relaxamento com visualizações dirigidas (LEONE, 2007), visando entender a sua relação com seus antepassados.
Inicialmente foi pedido que J.M. se imaginasse à frente de um auditório. Foi requisitado que ela imaginasse seus pais sentados na primeira fileira, atrás deles seus avôs e assim sucessivamente com todos os antepassados que surgissem na hora. Foi proposto que ela desfizesse a imagem dos parentes e em seguida sentasse na cadeira que mais lhe chamasse a atenção. Depois, foi requisitado que ela olhasse a frente do auditório e observasse a si própria pela visão da pessoa que ocupara anteriormente aquele assento. Foi pedido então que ela fundisse as duas pessoas e percebesse as sensações.
J.M. relatou ter sentado no lugar de sua avó paterna. Disse também que não conseguiu enxergar a si própria, pois, “estava tudo escuro e não dava pra ver nada”. Contou ter sentido muita relação com os sentimentos da avó. L.M. disse também que percebeu a presença de uma “pomba branca e de um leão” durante a fusão das duas pessoas.
Ao final da vivência, a cliente relatou que as relações que se mostraram mais fortes foram as com sua mãe e sua avó paterna, uma vez que segundo ela, seu avô paterno era um homem sem atitudes, “ele não tinha boca pra nada, minha avó brigava com ele e ele ficava quieto”.
Após se aprofundar no assunto, J.M. começou a ter percepções relativas à similaridade de suas atitudes com as de sua avó, notando que assim como ela, J.M. sente necessidade em mandar nos outros, controlar os ambientes em que está e sempre maltrata seus namorados mesmo quando não tem razão: “já me peguei pensando em arrumar um homem que não tenha boca pra nada”.
A cliente foi solicitada a pensar a respeito disso durante a semana, sempre imaginando se está agindo como gostaria ou como agiria a sua avó. Expressou então que, “às vezes quero rir de coisas com os outros, mas tem algo que não deixa e então eu fico de cara fechada rindo por dentro”.
Após essa sessão a figura do processo terapêutico tornou-se a avó paterna, esclarecendo que a maior vinculação da cliente é com ela. Padrões de repetição como comportamentos de controle, intolerância, rigidez e desvalorização da figura masculina ficaram evidentes.
A confluência que antes se mostrava dispersa em vários membros da família direcionou-se para a avó, e até mesmo os comportamentos que ela dizia repetir do pai, na verdade eram da mãe dele. “Eu amava minha avó, mas não conseguir ficar muito perto dela, sempre dava um jeitinho de sair da casa dela e ir passear”, esse relato foi seguido de outro confirmativo: “meus namorados não conseguiam ficar muito tempo comigo, diziam me amar, mas sempre tinham algo para fazer com os amigos ou para o trabalho”.
A sessão mexeu de forma significativa com a cliente. Pela primeira vez disse sentir-se compreendida: “agora começo a entender o meu lugar aqui, tenho feito coisas que minha avó gosta e não as minhas”. Tobin (1997) ressalta a forma significativa como os sentimentos não-expressos podem causar dificuldades quando uma das pessoas não está mais presente. Segundo ele, os indivíduos ainda carregam muitas emoções não-expressas acumuladas, antigos ressentimentos, dores, culpas e até amores não-expressos que impedem o fim de um relacionamento quando uma das pessoas não está mais presente para ouvir tais sentimentos. A morte da avó impediu que J.M. pudesse expressar suas emoções por ela, seu carinho, sua admiração e até mesmo a dificuldade em compartilhar o mesmo ambiente. Essas emoções não-expressas certamente colaboraram para a instalação da confluência neurótica na cliente. Reviver a história da avó e seguir seus passos era a maneira que J.M. encontrou para manifestar tais conteúdos.
Diante do aparecimento de dados tão relevantes, o processo terapêutico será mantido. O material deste artigo reflete as circunstâncias pontuais de um longo processo, mas que ainda assim pode ter algum valor no sentido de instigar pesquisas sobre mecanismos neuróticos e padrões de repetição familiar.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A queixa inicial da cliente foi uma depressão iniciada durante um relacionamento amoroso e, ao longo do processo terapêutico, tal “diagnóstico” foi descartado. O que ficou mais evidente foi uma dificuldade da cliente com relação ao autoconhecimento, com o limite de contato percebido.
A depressão citada, provavelmente tinha um caráter de crise existencial, dificuldade em encontrar o seu lugar na sociedade, no âmbito familiar e com isso incapacidade em estimular o ser que havia se perdido em meio a essa confusão de sentimentos, à confluência.
A tendência à confluência com membros familiares se tornou figura no processo, mas inicialmente tinha um caráter muito generalizado, uma vez que a cliente focava muito sua relação nos pais e não citava em momento algum a história de seus avós ou até mesmo parentes mais distantes.
A ausência ou apatia dos personagens masculinos observados durante a infância da cliente parece ter deslocado sua atenção para as mulheres e na maneira como as mesmas reagiam diante das dificuldades cotidianas, o que teria trazido a atual dificuldade da mesma em se relacionar, uma vez que não consegue respeitar e compreender as manifestações individuais do parceiro.
Após uma técnica de visualização dirigida, a cliente trouxe pela primeira vez a figura da avó paterna que se revelou variável notável na maneira de agir da cliente. Essa técnica permitiu delimitar uma interação terapeuta-cliente nos motivos essenciais e nas ações oriundas da avó que possam ter eliciado essa confluência por parte da cliente.
A partir daí a cliente mostrou iniciativa em tentar diferenciar quais seriam os seus desejos e quais eram os desejos da avó que ela vinha repetindo, trazendo para si a sensação de deslocamento em sua vida.
Esse estudo ilustra a importância de se considerar os eventos que ocorrem na infância de um indivíduo, os modelos recebidos nos quais sobrepõe uma confluência.
A contribuição principal desse estudo é a de alertar os psicoterapeutas acerca da importância de se respeitar à história de vida e a individualidade de cada cliente. Ao psicoterapeuta cabe se despir de seus julgamentos e expectativas a cada vez que se deparar com um novo cliente. Permitindo que o próprio cliente feche suas gestalten da maneira que for possível para ele no momento.
REFERÊNCIAS
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1 Psicólogo Graduado pela Fundação Educacional de Fernandópolis/SP – FEF.
2 Psicólogo; Docente da Fundação Educacional de Fernandópolis; Supervisor do Curso de Aprimoramento em Psicologia da Saúde do Serviço da FAMERP – FUNFARME; Mestre em Psicologia – PUC – Campinas/SP.
3 CASARIN, D. Awareness. [online] Disponível na Internet via http://www.igt.psc.br/Artigos/Awareness.htm. Arquivo capturado em 05 de novembro de 2007