Maria Generosa Ferreira Souto*
publicado em 03/12/2009 como www.partes.com.br/cultura/riso.asp
“Melhor é de risos que de lágrimas escrever
porque o riso é a marca do homem” .
(François Rabelais – Gargantua)
RESUMO: Este artigo discute aspectos do riso e seus vários efeitos como forma de manifestação comunicativa. A historicidade do riso e suas interdições na sociedade, numa cosmovisão carnavalizadora em que a cultura do riso se destingiu por seu radicalismo e sua liberdade excepcionais e por sua implacável lucidez. O riso medieval foi concedido em praça pública, durante as festas e na literatura recreativa. Durante o Renascimento o riso penetrou na sociedade através da criação de obras mundiais, tornando-se a expressão de uma consciência nova, livre, crítica e histórica.
Palavras-chave: Riso, Sociedade, Carnavalização.
ABSTRACT: This essay discuss about laugh aspect into their several efects like a way of manifestation. Its morphology in (synthesis) through ages in some civilizations. The historicity of laugh its closures over society, in a carnival cosmovision from which he laugh culture distinguished oneself by its implacable lucidity. The medieval laugh had been granted in public squares during parties and in recreative literature. But in Renaissance, the laugh was penetrated into society indeed through creation of world works, then it became an expression of a new, free, critique and historic consciousness.
Key words: Laugh, Society, Carnival.
Estas questões são o objeto deste estudo. Interessa-me, desta maneira, perquirir o riso numa travessia pelas obras de Mikhail Bakhtin, Vladimir Propp e José Rivair Macedo e Bérgson. Buscarei ancoragem nos autores supracitados, tendo-se como princípio a linguagem do riso e suas concepções acerca do que é e do que não é risível, bem como os aspectos internos e externos sob o ponto de vista psíquico que envolve o ato de rir. Por que ser ri? O homem é o único ser que ri? Quais são os tipos de risos? Algumas pessoas riem mais do que outras? Há diferença entre o rir e o sorrir?
Indagações como essas formam o esboço do que pretendo perpassar, a saber, as diversas faces significantes do riso.
A carnavalização tornou possível a estrutura aberta do grande diálogo. Para isso, teve que vencer as interações sociais dos homens, sobretudo na esfera superior do espírito e do intelecto, apanágio, durante muito tempo, de uma consciência isolada, monológica, de um espírito único, indivisível, que só se desenvolve no seu próprio interior, fechado a qualquer tipo de colóquio. A carnavalização que penetrou na literatura e, de certa forma, veio determinar a estrutura de um gênero, pode ser encontrada em todos os movimentos artísticos. A principal fonte de carnavalização para a literatura, nos séculos XVII e XIX, se encontra em autores renascentistas como Boccaccio, Rabelais, Shakespeare e Cervantes.
Em textos carnavalizados rompe-se a lógica do cotidiano, funde-se o real ao imaginário e aproximam-se elementos contraditórios; sabedoria e burrice, loucura e razão, vida e morte, o certo e o errado, o sacro e o profano, o velho e o moço, o gordo e o magro, o sublime e o grotesco, o sério e o riso. Bakhtin, com A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1987), realizou o primeiro estudo sério a respeito da cultura cômica popular, — tão antiga quanto o riso — reconhecendo-lhe a expressão literária e analisando com bastante amplitude, seu principal caráter estilístico — o realismo grotesco.
A época de Rabelais, Cervantes e Shakespeare marca uma mudança capital na história do riso. Em nenhum outro aspecto, a não ser na atitude em relação ao riso, as fronteiras que separam o século XVII e seguintes da época do Renascimento, são tão bem marcadas, tão categóricas e nítidas. A atitude do Renascimento em relação ao riso pode ser caracterizada, da seguinte maneira: o riso tem um profundo valor de concepção do mundo, é uma das formas capitais pelas quais se exprime a verdade sobre o mundo na sua totalidade, na história e na vida do homem, talvez mais do que o sério. A “grande literatura”, que coloca por outro lado problemas universais, deve admiti-lo da mesma forma que ao sério : somente o riso, com os seus vários efeitos, pode ter acesso a aspectos extremamente importantes na sociedade.
Bakhtin (1996) cita Aristóteles (383 a. C. – 322 a. C.) na célebre fórmula: “O homem é o único ser vivente que ri”. Daí, percebe-se que o riso era considerado como o privilégio espiritual supremo do homem, inacessível às outras criaturas.
Ronsard emprega a fórmula aristotélica dando-lhe um sentido mais amplo nos versos que se seguem:
Deus, que ao homem submeteu o mundo,
Ao homem apenas concedeu o riso
Para que se divertisse, e não às bestas
Que não têm razão nem espírito nas cabeças.
O riso, dom de Deus, unicamente ao homem concedido, é aproximado ao poder do homem sobre a terra, da razão e do espírito que apenas ele possui.
Conforme o Laboratório do Riso, na Revista Galileu (março/2002) rir não é um ato exclusivo dos humanos, ao contrário do que imaginava Aristóteles. Orangotangos, gorilas, chimpanzés e outros membros do grupo dos primatas também dão boas risadas, quando estão em grupo. Mais um ponto a favor da teoria de que o riso estaria desvinculado de emoções elaboradas e próximas da felicidade, como constata Robert Provine, pesquisador da Universidade de Maryland, EUA.
Propp (1991) nos lembra que o macaco sendo “o mais ridículo de todos os animais, ele, mais do que todos, lembra o homem”. Há algo realmente notório na natureza, que está ligado com o sorrir e não com o rir. Ninguém ri da flor ao desabrochar ou das árvores de uma floresta, mas sorri das formas belas da natureza como algo indubitavelmente superior, divino, algo longe da esfera humana avaliativa. O animal pode alegrar-se, regozijar-se, mas ele não ri”. Infere-se dessa afirmação a incapacidade de o animal irracional realizar alguma operação mental. Para rir é preciso se fazer uma ligação como o ridículo ou atribuir às ações algum valor moral com sentido cômico ou não.
Das várias faces do risível levantei uma “morfologia do riso” partindo dos provérbios de Salomão, 26 ao Livro do Eclesiastes.
Também eu me rirei
na vossa desventura,
e, em vindo o Vosso terror,
eu zombarei (Salomão : 26)..
Do Eclesiastes: “Disse comigo:vamos! Eu te provarei com a alegria; goza, pois, a felicidade; mas também isso era vaidade. Do riso disse: é loucura; e da alegria: de que serve? Resolvi no meu coração dar-me ao vinho, regendo-me, contudo, pela sabedoria, e entregar-me à loucura até ver o que melhor seria que fizessem os filhos dos homens debaixo do céu, durante os poucos dias da sua vida.” (Ec. 2,3).
Agora, levarei em conta as várias faces do Riso, deixando vazios para que se faça, posteriormente, estudos pertinentes acerca de cada tipo mencionado e em que circunstanciais são manifestados.
Riso zombeteiro
Riso gargalhado
Riso de deleite
Riso de prazer
Riso de bruxaria
Riso de loucura
Riso de dor
Riso amargo
Riso triste
Riso trágico
Riso irônico
Riso hipócrita
Riso disfarçado
Riso sarcástico
Riso sardônico
Riso soberbo
Riso despudorado
Riso bastardo
Riso genuíno
Riso alegre
Riso de saudação
Riso de desprezo
Riso de humor
Riso terapêutico
Riso cômico
Riso virtual
Riso caricatural
Riso cultural
Riso caipira
Riso subversivo
Riso romântico
Riso malicioso
Riso insinuante
Riso erótico
Riso sensual
Riso perverso
Riso de deboche
Riso indignado
Riso sereno
Riso burlesco
Riso ambíguo
Riso doce
Riso mímico
Riso amarelo
Riso escandaloso
Riso espetaculoso
Riso tolo
Riso cordial
Riso indulgente
Riso tímido
Riso amável
Riso amigável
Riso hostil
Riso sincero
Riso terno
Riso triunfante
Riso justificativo
Riso infantil
Riso embaraçado
Riso festivo
Riso grosseiro
Riso popular
Riso grotesco
Riso carnavalesco
Riso gratuito
Riso infernal
Riso excêntrico
Riso inteligente
Riso significativo
Riso sem-vergonha.
A partir desta morfologia, depreendi que o riso é produto de uma dada cultura, resultando da complexidade do social. Observei que o homem ri, é verdade, todavia não pelos mesmos motivos e circunstâncias. Conforme Sodré (1974), nem tudo é motivo de riso para todos os homens e, por isso, faz-se necessário reconhecer condicionamentos socioculturais em diferentes grupos humanos, ligados à expressão de formas de poder e de crítica social.
Bergson (1927) ressalta que o riso é um ato fisiológico, resultante da contração dos músculos faciais de acordo com a oscilação de emoções ou de abruptas modificações no estado de espírito dos indivíduos, sendo, portanto, um ato social. O rir está condicionado a diversos significados determinados pelos códigos de comunicação aceitos coletivamente, pelas convenções partilhadas. Logo, segundo Bergson (op. Cit), o homem não é apenas “um animal que ri”, mas também um “animal que se faz rir”.
Victor Hugo (1802 – 1885) afirma que “O riso é o sol que leva o inverno do rosto humano”. Concordando com Hugo, é comum acreditar que a felicidade está ligada ao humor — a capacidade de perceber e apreciar a diversão e a graça da vida e de rir por causa disso. Mas como demonstraram Platão (427 a. C. – 347 a. C) ou Freud (1856 – 1939), isso não é bem verdade. A função do riso pouco tem a ver com a demonstração do chamado bem-estar subjetivo — que seria uma forma de definir sentimento efêmero da felicidade.
Robert Provine investiga o significado do humor e do riso na sociedade e notou que as pessoas riam trinta vezes mais quando estavam acompanhadas assistindo a um filme ou lendo um livro. Em menos de 20% dessas situações, as risadas eram provocadas por piadas ou por outra tentativa de fazer humor.
Provine notou, também, que o riso funciona como ponto a favor nos jogos de relacionamento entre os sexos. Ou seja, as mulheres riem mais do que homens, principalmente, quando com eles conversam. Por sua vez, os homens obtêm mais retorno em risadas do que as mulheres e constatou, ainda, que a maioria dos homens preferia mulheres risonhas, confundindo, às vezes, com senso de humor. Da mesma forma, Provine analisou o riso no ambiente de trabalho e constatou que ele é mais comum entre os subordinados, quando se dirigem ao chefe, do que o contrário. Chefes, segundo ele, são mais solenes e sérios e não se preocupam em “quebrar o gelo” social.
A psicóloga Emma Otta, professora da USP e autora do livro O Sorriso e Seus Significados,concorda: “Apesar de funcionar como um indicador de alegria genuína, muitas vezes uma risada espontânea também pode ser uma expressão de desconforto”. Muitos pesquisadores são unânimes em afirmar que “rir é o melhor remédio”, como constam os estudos acerca das atribuições positivas e terapêuticas do riso, fortalecendo o sistema imunológico no combate às infecções como também nas propriedades analgésicas.
Assim, muitos pensam que o riso é a forma mais perfeita de fugir da realidade. Nesta afirmação está inserido o âmago da questão. Durante toda a história da humanidade o que se vê é sempre o homem procurando algo diferente da sua realidade para ser mais feliz, alegre, de bem com a vida. Uma das formas mais eficazes, o homem encontrou no ato de rir. Rir de qualquer coisa, ainda que desprovida da risibilidade. Eu diria que há os momentos adequados e os inadequados para fazê-lo.
Na Idade Média, o riso foi tido como vil, subversivo, maligno, proibido. A riquíssima cultura popular do riso nesta era viveu e desenvolveu-se fora da esfera oficial da ideologia e da literatura “elevada”, conforme Bakhtin (1996). E foi graças a essa existência extra-oficial, carnavalizadora, que a cultura do riso se distinguiu por seu radicalismo e sua liberdade excepcionais, por sua implacável lucidez.
Conforme Macedo (2000), o riso, mesmo tendo sido resgatado e transformado em objeto de reflexão, permanecia na condição de sintoma de pecado: se a faculdade de rir era intrínseca à condição humana, então era sinônimo de mácula e degeneração.
E o riso medieval beneficiou-se ampla e profundamente concedido em praça pública, durante as festas e na literatura recreativa. Mas foi durante o Renascimento que o riso, na sua forma mais radical e alegre, penetrou decisivamente para a criação de obras de arte mundiais, como o Decameron, de Boccaccio, o livro de François Rabelais, o romance de Miguel de Cervantes, os dramas e comédias de William Shakespeare. Com isso, mil anos de riso popular extra-oficial foram incorporados na literatura da consciência nova, livre, crítica e histórica da época e … eclodiu. Como diz o velho ditado: “Rir é o melhor remédio”. Sorria, portanto!
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikail. A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec/Unb, 1996.
BERGSON, Henry. O Riso . São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BIBLIA sagrada. A. T. Provérbios. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil/ Casa Editora Presbiteriana, 1999. Cap. 1-26, p. 567.
BIBLIA sagrada. A. T. Eclesiastes. 2. ed. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil / Casa Editoria Presbiteriana, 1999. Cap. 2, p. 593.
COLAVITTI, Fernanda. A diferença entre riso e felicidade. In: Revista Galileu. São Paulo: Editora Globo, nº 128, março, 2002.
MACEDO, José Rivair. Riso, Cultura e Sociedade na Idade Média. Porto Alegre/São Paulo: Ed. UFRGS/Ed. Unesp, 2000.
PIRES, Orlando. Manual de Teoria e Técnica Literária. Rio de Janeiro: Presença, 1989.
PROPP, Vladimir. Comicidade e Riso. São Paulo: Ática, 1992.
SODRÉ, Muniz. O Riso __ imaginário e simbólico:é possível rir ideologicamente. Revista de Cultura Vozes, v. 68. n.1, p. 31-34, 1974.
Maria Generosa Ferreira Souto é Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC/SP). Mestre em Letras: Literatura Brasileira (UFMG). Professora Titular de Literaturas de Expressão Portuguesa, no Curso de Letras e na Pós-graduação em Letras/Literatura Brasileira da Universidade Estadual de Montes Claros-MG. E-mail: generosas@hotmail.com