Entrevistas

Henrique Blanc

Entrevista para Agência Notisa

publicado em 02/12/2009

Turismo de massa ou de “alto-padrão” pode gerar infraestrutura que a população local não necessita. São necessárias práticas racionais e sustentáveis.

 

O Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social da COPPE/UFRJ em parceria com o Ministério do Turismo lançou este ano o livro “Turismo de Base Comunitária: diversidade de olhares e experiências brasileiras”. A publicação, organizada por Roberto Bartholo, Davis Gruber Sansolo e Ivan Bursztyn é formada por duas partes. A primeira, intitulada “Diversidade de olhares”, com enfoque é teórico, conceitua o turismo de base comunitária. “Experiências brasileiras”, segunda parte da publicação, descreve algumas iniciativas que foram apoiadas pelo Ministério do Turismo. O filósofo e jornalista Enrique Blanco foi um dos pesquisadores que fez parte desse projeto. “O turismo rural em áreas de agricultura familiar: as ‘novas ruralidades’ e a sustentabilidade do desenvolvimento local” é o capítulo de sua autoria. Em entrevista concedida à Agência Notisa, Enrique esclarece porque, para ele, as diversas experiências voltadas ao turismo de base comunitária são importantes para o desenvolvimento das comunidades residentes.

 

NOTISA – Como surgiu o convite para participar desse projeto? E como foi a experiência?

 

Enrique Blanco – Trabalhei durante alguns meses como pesquisador do Instituto Virtual de Turismo (IVT), do Laboratório de Tecnologia e Desenvolvimento Social (LTDS), da Coordenação dos Programas de Pós-graduação em Engenharia (COPPE/UFRJ). Fui convidado pelo IVT, por parte de um dos organizadores do livro, Ivan Bursztyn, para participar do projeto. Publiquei originalmente o artigo “O turismo rural em áreas de agricultura familiar: as ‘novas ruralidades’ e a sustentabilidade do desenvolvimento local” no Caderno Virtual do IVT. Este artigo foi resultado de um aprofundamento de uma pesquisa de campo que fiz para uma matéria publicada na Revista Senac & Educação Ambiental.

 

NOTISA – Por que considera importante falar sobre turismo de base comunitária?

 

Enrique Blanco – Entender as diversas experiências voltadas ao turismo de base comunitária é fundamental para colaborar com a difusão dessas práticas, tão importantes para o desenvolvimento de comunidades que têm em seu patrimônio histórico, artístico, cultural e geográfico uma possibilidade real de melhorar as condições de vida de seus moradores. Em muitos desses locais, a vocação turística pode e deve ser fortalecida, mas de forma racional e não predatória. O turismo de base comunitária tem o objetivo de envolver a comunidade na implantação de projetos e ações de turismo que respeitem a realidade local, de modo que as vantagens trazidas pela chegada dos turistas nessas regiões revertam em benefícios concretos para os moradores.

 

NOTISA – Em seu texto, você afirma que a presença de turistas urbanos pode estimular a produção e o desenvolvimento local. Pode explicar como isso ocorre?

 

Enrique Blanco – A principal forma de participação dos turistas urbanos no desenvolvimento local é a melhoria das condições de vida da população residente que ocorre com o incremento da rede de comércio e de prestação de serviços, por meio do consumo que a população flutuante de turistas traz para esses locais. Todo o desenvolvimento de infraestrutura que tem o objetivo de atender o turista, como hospitais, supermercados, farmácias, rede de transporte, esgoto, iluminação, pavimentação, serve também à população local. Desse modo, tais regiões passam a ter no turismo uma de suas principais fontes de geração de emprego e renda e de melhoria das condições de vida da população. Contudo, para que a comunidade local seja realmente beneficiada, deve haver uma constante articulação entre o poder público, comércio, associações, cooperativas e outras entidades.

 

NOTISA – Quais as dificuldades desta estratégia?

 

Enrique Blanco – O problema é definir o limite da influência positiva que o turismo traz para determinada região. Esse limite pode ser ultrapassado de duas formas, que podem acontecer simultaneamente ou de maneira isolada. Uma delas, a mais nítida, é a transformação do que era considerado um “paraíso”, em espaços degradados do ponto de vista ambiental e urbano. Um exemplo é Arraial do Cabo, localizada na Região dos Lagos, no Rio de Janeiro. Conhecida como a “Pérola do Atlântico”, se transformou, em pouco mais de uma década, numa cidade degradada com crescimento desordenado, consumo de drogas, comércio desorientado, favelização, focos de poluição e violência, devido à desorganização provocada por um turismo predatório. Parte da areia da Prainha está ocupada por centenas de cadeiras e quiosques que preparam toda sorte de alimentos e bebidas. O início da Praia Grande foi loteado por trailers e demarcado com cordas que se estendem pela areia definindo a área de atuação dos vendedores, que para animar os turistas, aumentam o volume das caixas de som ao sabor de ritmos variados. O impacto negativo do turismo de massa desestruturou a cidade em diversos setores, não apenas no aspecto desorganizado de ocupação das praias. Todavia, não apenas a degradação urbana e ambiental transforma a vida das comunidades.

 

NOTISA – Há outras faces negativas de crescimento turístico?

 

Enrique Blanco – Outra forma de ultrapassar a influência positiva do turismo é o crescimento exacerbado da infraestrutura, que vai muito além das necessidades da população local. Algumas regiões passam a sustentar uma infraestrutura que atende o nível de luxo e conforto de uma elite de turistas, que se convencionou chamar de “alto-padrão”. Refiro-me, entre outros exemplos, à praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis, onde o próprio nome já transformou o local em uma marca de status. Do luxo dos automóveis e motos importadas desfilando pelas ruas, das mansões de centenas de metros quadrados construídas a poucos metros da areia, dos shopping-centers, restaurantes de luxo, concessionárias de automóveis e clubes privê, a própria população local aproveita muito pouco, ou quase nada. Tais símbolos de conforto e requinte mais parecem corpos estranhos incrustados à força nesses locais. Mesmo os impostos arrecadados servem mais para fortalecer a infraestrutura desses espaços, do que realizar benfeitorias realmente necessárias à comunidade. Assim, seja pela degradação urbana e ambiental, seja pelo desenvolvimento de uma infraestrutura incoerente com as necessidades locais, algumas regiões são efetivamente prejudicadas pelo turismo de massa ou de “alto-padrão”.

 

NOTISA – Qual a solução para tais problemas?

 

Enrique Blanco – De fato, para a implantação de práticas racionais e sustentáveis de turismo deve haver um planejamento realista em relação ao que a comunidade efetivamente precisa, com o envolvimento do poder público integrado com as entidades representativas da população local. Nesses exemplos que fiz referência, o foco foi atender unicamente o turista e não à comunidade, tanto por ações desorganizadas e predatórias, como por intervenções extremamente ambiciosas e desproporcionais. A ideia é fazer exatamente o contrário.

 

NOTISA – O turismo quando não é bem pensado e organizado pode trazer danos para os locais. Poderíamos dizer que pode ter efeitos negativos diretos sobre a natureza (desmatamento, assoreamento, poluição do solo e da água) e indiretos sobre a população, por exemplo, um fluxo grande de turistas atrai capital e muitas vezes pode gerar violência, consumo de drogas e, portanto, descaracterização da cultura local. Você fala da experiência da agricultura rural no Rio Grande do Sul. Que medidas podem ser adotadas para impedir que o turismo traga esses prejuízos? Você vê na prática que há um cuidado nesse sentido?

 

Enrique Blanco – Eu defendo a perspectiva do controle sobre o desenvolvimento de infraestrutura em certos locais, de modo que o limite seja o que a população local de fato precisa, e não apenas a oferta de conforto ao turista. Evidentemente, não se trata de manter o local em uma redoma, mas sim, evitar a transformação de certas comunidades em verdadeiros resorts de alto luxo, descaracterizando quase por completo a geografia e o modo de vida local. O que acontece é que esse processo de desenvolvimento para atender o turista não tem fim, ou seja, quando mais você constrói autopistas, viadutos, comércio de todos os tipos, condomínios, clubes e outras “facilidades”, que fazem o turista se sentir em casa, mais pessoas afluem para esses locais e mais se precisa de infraestrura para atendê-las, e o ciclo vicioso não acaba. O ciclo de melhorias contínuas em regiões que eram conhecidas como paraísos, exatamente porque eram de determinada maneira, acabam por descaracterizar esses locais, transformando-os em extensões artificiais dos centros urbanos. Mesmo que o turista passe a fazer parte da população permanente, ele deve respeitar o modo de vida, a estrutura geográfica e constituição histórica daquele local – aliás, foram esses atributos que levaram os turistas para essas regiões.

 

NOTISA – Por exemplo?

 

Enrique Blanco – No exemplo de Dois Irmãos, na Serra Gaúcha (Rio Grande do Sul), houve o envolvimento direto dos moradores com o poder público local, por meio de suas entidades representativas para que o turismo revertesse em benefício da comunidade. Foi identificada a vocação turística local que, no caso, é o modo de vida dos agricultores familiares. Criou-se a Rota Colonial (secundária), vinculada à Rota Romântica (principal), que traz turistas para a cidade ao mesmo tempo em que serve para interligar outras rotas temáticas que cruzam toda a Serra Gaúcha. A ideia de rotas temáticas é apenas uma forma de concretizar um objetivo comum. Na verdade, houve uma integração muito bem pensada, que foi além dos limites locais, abrangendo uma política consistente de turismo regional em prol da comunidade. Aliás, quando digo benefício da comunidade, não me refiro apenas aos recursos financeiros, mas, principalmente, ao não desrespeito ao modo de vida local, ao espaço geográfico, ao patrimônio ambiental e cultural. Como comentei, não se trata de preservar a comunidade numa redoma protegida das influências externas, como num museu, mas sim, avaliar a qualidade dessa influência. A cultura é viva e as trocas de conhecimentos, hábitos e costumes entre os turistas e os moradores são altamente enriquecedoras para ambos.

 

NOTISA – Na sua opinião, qual é o papel do poder público, da iniciativa privada e dos sindicatos regionais de trabalhadores rurais, respectivamente, no turismo rural?

 

Enrique Blanco – Se eu pudesse resumir o papel desses atores, não apenas no turismo rural, mas em outras formas de turismo, diria: integração. Em nada adianta forçar o diálogo com base unicamente em interesses corporativistas. O consenso e a equalização mínima de interesses ocorrem quando todos os atores percebem que houve ganhos, apesar das concessões e das mudanças de rumo. Quando estive no V Fórum Social Mundial, ocorrido em Porto Alegre, em 2005 (o último sediado no Brasil), participei como ouvinte de diversas apresentações que formaram um eixo temático, criado com o seguinte objetivo: como pensar o turismo de forma abrangente, envolvendo e engajando os cidadãos com o objetivo de promover o desenvolvimento socioeconômico local e fortalecer as culturas tradicionais, a partir da perspectiva da sustentabilidade. A criação de microrredes de turismo de base comunitária em todo Brasil contou com algumas experiências internacionais e privilegiou, exatamente, a proposta de integrar as necessidades das comunidades locais com a afluência do turismo.

 

NOTISA – Como assim?

Enrique Blanco – O que ficou demonstrado é que para equalizar ações voltadas ao desenvolvimento do turismo local, os princípios do turismo de massa têm que ser evitados, pois essa forma de turismo tem transformado as experiências de turismo local em sérios problemas para as comunidades receptoras. Na verdade, as dificuldades enfrentadas pelo turismo de massa são soluções para o turismo de baixo impacto. Como já citei, um dos exemplos é a infraestrutura. Obviamente, o turista necessita de toda infraestrutura necessária para sua segurança e bem estar, mas o turista que se envolve em comunidades que promovem o turismo solidário ou de base comunitária, não espera nem deseja pousadas altamente sofisticadas, shopping-centers, boates, cybers-cafés, ou coisas do gênero. Agir em comunidades tradicionais com o mesmo modelo do turismo de massa provoca um impacto altamente negativo para essas regiões, devido ao grau de sensibilidade e fragilidade do modo de vida das populações locais e dos recursos naturais da região.

NOTISA – Quais são as conseqüências disso?

Enrique Blanco – Esse processo produz a segregação espacial e social dos moradores, a perda da posse de terra devido à especulação imobiliária, a concentração de renda nas mãos de quem explora o comércio e os serviços locais, a perda da identidade cultural das populações tradicionais, enfim, a drástica diminuição da qualidade de vida local. Outro fator perverso trazido pelo turismo de massa ressaltado pelos participantes do V FSM foi o uso da mão-de-obra local. Como os serviços prestados por esse modelo de turismo demandam conhecimentos mais específicos do que são oferecidos pela população local, os empregadores dão preferência por mão-de-obra de outras regiões por causa da baixa formação técnica local. Todavia, isso forma um círculo vicioso, pois nem o poder público local, nem os empregadores investem na formação e capacitação técnica da comunidade, achando mais fácil e econômico importar mão-de-obra de outras regiões. Quando muito, a mão-de-obra local serve para executar funções menos qualificadas e com baixo rendimento. O poder público se omite em relação a esse fato, e o resultado é o aumento da pobreza e da exclusão social dos moradores dessas localidades. A conclusão é que o turismo de massa é excludente e segregador, quando sua lógica é aplicada em locais que têm potencial para o turismo solidário ou de base comunitária. Para o desenvolvimento local sustentável, a lógica de implementação, produção e gestão dos recursos humanos e naturais tem que ser totalmente diversa.

 

NOTISA – O livro traz na segunda parte a experiência de projetos de turismo comunitário fomentados pelo Ministério do Turismo. Muitos projetos são organizados por ONGs e associações. Em sua opinião, a população local, de forma geral, realmente é beneficiada com as atividades de turismo? Sabendo que há recursos financeiros envolvidos nesses projetos, não há a preocupação de que o dinheiro acabe centrado nos organizadores e que efetivamente não chegue à população?

Enrique Blanco – Os benefícios diretos ou indiretos que podem reverter para população local dependerão da forma de gestão dos projetos. Assim, cada caso dever ser analisado. A integração entre poder público e a comunidade poder ser mediada por Ongs, associações locais, institutos, sindicatos, ou por organismos como a Emater, sem maiores problemas. O fundamental é a possibilidade de fiscalização dos recursos e a transparência das ações por conselhos de bairros que, de preferência, não tenham influência do organismo responsável pela gestão dos recursos. É difícil, mas a dificuldade não pode impedir a tentativa de estabelecer rotinas de fiscalização dos recursos e das ações, por meio de conselhos, associações ou centros comunitários. Entendo que as universidades públicas e particulares devem participar ativamente da integração entre comunidade, poder público e turismo. Se não houver essas instituições nas comunidades, a parceria deve ser buscada com outros municípios que tenham essa estrutura, ou até em nível estadual. Linhas de pesquisa, estágios para disciplinas como turismo, engenharia ambiental, sociologia, antropologia e outras áreas do conhecimento que estejam envolvidas direta ou indiretamente com o turismo. A ação deve ser integrada e abrangente, indo além dos limites físicos da região onde se pretende implantar projetos e ações turísticas.

 

Agência Notisa (science journalism – jornalismo científico)

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