Larissa Daiane Pujol C. dos Santos1
publicado em 01/10/2009
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Nelson Rodrigues, dramaturgo pernambucano, sempre teve audácia ao escrever suas peças. Considerado por uns como trágico, por outros como sádico, tarado, provocador e outros adjetivos não elogiáveis, Nelson Rodrigues abalou o meio cênico ao tematizar em suas obras questões tão fortes como o cotidiano brasileiro e os problemas enfrentados pela família brasileira.
O sucesso de Nelson Rodrigues e seus personagens se deram pela coragem de enfrentar a censura e pela indiferença do autor perante a crítica. O autor chegou a ser comparado com outros autores, como o americano, Eugene O’Neill, e o alemão Wedekind, todavia com um toque brasileiro, como afirma Aguiar:
Mas o teatro de Nelson era sempre temperado pelo escracho, o deboche, a ironia, a invectiva e até mesmo o ataque pessoal, tão caracteristicamente nacionais. (AGUIAR, 2004, p. 106)
O desgaste da família patriarcal, contida nas obras desse dramaturgo, sempre parece acontecer por causa do núcleo de temas tratados, como o incesto, a virgindade, o ciúme, a traição, a morte trágica. Em um só título se mesclam todos esses elementos típicos de tragédia na canalhice humana dos personagens que, conforme Aguiar (2004), estão sempre situados em um ambiente de farsa, por uma paisagem provida de paixões por posses financeiras e ascensão social, os quais se buscam pela venalidade ou pelo preço de todos os sentimentos. Em suma, o teatro de Nelson Rodrigues:
[…] temperou o exercício do realismo cru com o da fantasia desabrida, num resultado sempre provocante. Valorizou ao mesmo tempo o coloquial da linguagem e a liberdade da imaginação cênica. (AGUIAR, 2004, p. 107)
Em, Os Sete Gatinhos, a paz inicial da casa do Seu Noronha faz com que o trágico se instale e anuncie a violência que está para ocorrer. Seu Noronha parece viver num clima tranquilo e de ordem com suas filhas e sua mulher, até que no segundo ato da peça, o patriarca se abala com as obscenidades escritas no banheiro da casa e esbofeteia a filha Arlete por ofendê-lo.
A ordem, depois desse fato, é uma mera aparência, porém todos dessa casa se voltam para um único objetivo: fazer as bodas da filha caçula, Silene, a única virgem das irmãs, ou melhor, supostamente virgem.
As irmãs mais velhas, Aurora, Arlete, Débora e Hilda prostituem-se para oferecer à Silene enxovais e um bom casamento, porém a atmosfera piora quando esta é expulsa da escola por matar uma gata prenha de sete gatinhos. O fato deixa todos atônitos e preocupados com a atitude da garota. Tenta-se resolver da melhor maneira possível, todavia a calma parece carregar ainda mais a nuvem negra que paira naquela casa.
Silene ao ficar enferma, Seu Noronha chama o Dr. Bordalo para examiná-la, e eis o diagnóstico: grávida de três meses. O mundo daquela família desaba e logo se tem a reação inesperada do pai, obrigar Silene a se prostituir com o velho médico que a consultou. Com isso, depois do ato ocorrido, Dr. Bordalo se mata por não ter coragem de enfrentar a sua filha, de mesma idade de Silene.
Mais um fato de desordem é quando o espectador descobre que, na verdade, era o próprio pai quem aliciava os clientes para as filhas. Para Aguiar (2004) isso é uma banalização da tragédia, pois o inusitado tornou-se normal por causa da sucessão de fatos trágicos que estavam ocorrendo até então.
A peça vai criando uma suspeita em torno da capacidade de reação ética por parte da platéia e da sociedade que ela faz parte. Para o pensador moralista Nelson Rodrigues […] o mal não está na existência do vício […] mas sim na aceitação completamente passiva da sua presença, que ele mesmo é capaz de suscitar e prolongar. […] A tragédia tornou-se costumeira, parece ser o pensamento embutido da peça. Esta é a tragédia: não nos espantamos mais diante de tragédia alguma. (AGUIAR, 2004, p. 96-97)
Com isso, observa-se que na peça ocorre aproximação do tradicional com as tendências vanguardistas, pois as reações dos personagens tornam-se caricatas, grosseiras e ridículas, as quais segundo Aguiar, colocam-nos como patéticos e palhaços:
Uma família inteira entregue à depravação deslavada querer manter a filha mais nova pura e descobrir que ela engravidou e, mais ainda, graças ao amante da irmã mais velha, não é só apenas patético: dá mais é vontade de rir! […] Talvez por isso é que Nelson Rodrigues tenha chamado sua peça, tão cheia de mortes e gestos patéticos de “divina comédia”. (AGUIAR, 2004:97)
Para enfatizar a decadência do regime patriarcal, Nelson Rodrigues em Álbum de Família dramatiza a questão do incesto e do homossexualismo pautados em relações fortes e extremas pelos membros da família. Eles nutrem entre si sentimentos de raiva e ódio, amor e paixão. Os laços que unem o pai Jonas, a mãe Senhorinha e sua descendência não são aqueles esperados pela sociedade, eles escondem segredos que não, ou, dificilmente seriam aceitos com naturalidade.
Como em Os Sete Gatinhos, a apresentação da aparente normalidade dos personagens, que, nos desvios da sociedade deixam emergir os instintos e cometem uma série de crimes oriundos do comportamento sexual, fez com Nelson Rodrigues trabalhasse com os impulsos incontroláveis da sexualidade, valorizando o baixo, o corpo. Os envolvimentos amorosos, na obra rodrigueana, fogem aos padrões de “normalidade” estabelecidos pelas regras sociais. Desta forma, em Álbum de Família a relação lésbica entre Glória e Teresa aparece logo no início da peça, quase como um prólogo, e tem como finalidade precipitar os acontecimentos. Ao ser descoberta a relação entre as duas, ambas são expulsas do internato e Glória volta para casa impulsionando a revelação dos segredos da família.
Em Álbum de Família, os problemas ali presentes como, a loucura de Nonô, a autocastração de Guilherme, as violações praticadas por Jonas, a solidão e o desprezo que acompanham Rute, a impotência de Edmundo, a humilhação sofrida por D. Senhorinha e os sentimentos incestuosos da casa fazem com que a morte seja um meio através do qual, os personagens expurgam suas culpas pela vingança e penalidade, quase sempre de forma horrível e grotesca.
Ao considerar o destronamento simbólico do poder patriarcal, pode-se afirmar que os filhos homens de Álbum de Família buscam constantemente eliminar a figura do pai. Assim, Edmundo e Nonô querem eliminar o pai para receber as atenções da mãe, por quem nutrem um amor incestuoso; e Guilherme, para obter a atenção da irmã, pela qual é apaixonado. Não deixa de ser a manifestação do desejo da morte do pai, uma forma de usurpar o seu lugar.
Na peça, as traições possuem um toque mais sensual, respondendo aos apelos do corpo e transcorrendo dentro de um grupo fechado: uma família reduzida aos seus membros e uma ou outra pessoa de fora. Neste cenário, os personagens de Álbum de Família cometem traições dentro do gueto familiar – D. Senhorinha trai o marido Jonas, com o filho Nonô; Jonas trai sua esposa D. Senhorinha, com Rute, cunhada; Jonas comete o adultério e pedofilia dentro da própria casa com meninas de 12 a 16 anos, auxiliado por Rute. Segundo Oliveira (2003), o teatro rodrigueano faz com que os espectadores sintam-se chocados e agredidos em suas crenças e estereótipos de convivência social, pois acreditam que o correto é uma relação exogâmica e não endogâmica como ocorre em Álbum de Família.
Referência Bibliográfica:
OLIVEIRA, Ana Maria de. A moralidade como instrumento de censura: Álbum de Família de Nelson Rodrigues e sua reelaboração da Trilogia Tibetana. Revista Espaço Acadêmico, nº 28, setembro de 2003.
RODRIGUES, Nelson. Álbum de Família. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2004.
___________. Os Sete Gatinhos. Roteiro de leitura de Flávio Aguiar. Editora Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 2004.
1 Professora. Especialista em Literatura Brasileira pela UFRGS.
Como citar este artigo:
SANTOS, Larissa Daiane Pujol C. dos. Os Sete Gatinhos e Álbum de Família: poder patriarcal e transgressão na família brasileira. P@rtes (São Paulo). V.00 p.eletrônica. Outubro de 2009. Disponível em <>. Acesso em _/_/_.