Valfrido da Silva Nunes
publicado em 02/09/2009 como www.partes.com.br/educacao/sonhologoexisto.asp
Já me arrisquei em momento outros a refletir sobre a vida, mas assumo a minha pequenez diante de tema tão grandioso. Não sou expert no assunto, mas sou ousado a ponto de deixar escorrer “na superfície estrelada de letras” o que ora penso. Digo e repito que a vida não se faz somente no presente, no momento, no aqui e no agora. O sentido da vida também está na história, no já vivido e, sobretudo, no invisível, no não vivido, enfim, no que está por vir.
É bem verdade que a nossa existência é como um campo florido regado pelas águas dos sonhos, da utopia. Viver a vida objetivamente é necessário, mas ela precisa ter um pé no desconhecido, no que não é palpável para ter sentido pleno. Grosso modo, viver é sonhar! Não um sonho noturno (erótico, talvez), carregado de pesadelos e alucinações como uma pintura surrealista, produto do inconsciente. Não posso enveredar por esse caminho, pois não sou psicanalista: Freud que não me ouça!
Insisto em dizer que viver é também viver utopicamente. O sonho é ingrediente necessário à existência humana. Não falo de sonho somente como mera fantasia: eles são também os nossos desígnios, as nossas vontades que alimentam o nosso estar no mundo. O sonho é, portanto, um desejo invisível.
É o desejo de estar naquele evento amanhã ao lado daquela pessoa que nos faz comprar uma roupa diferente, um calçado também diferente e usar aquele perfume; é aquela viagem planejada há anos que nos faz perder a noite de sono na véspera; é o sonho de ser pai ou de ser mãe que nos obriga a nos enlaçarmos com outra pessoa e dividirmos com ela o nosso afeto, ou pelo menos o tesão (para os desprovidos de sentimentos mais nobres!); é o desejo de uma vida melhor que nos coage a fazer inúmeros concursos ou ter de trabalhar dobrado; é o desejo de fazer a faxina e ver tudo perfumado e brilhando para receber aquela visita (que muitas vezes nem aparece) que leva a dona de casa a fazer tudo felicíssima e cantarolando; é o sonho de ver o edifício construído com todos os detalhes esboçados que o arquiteto parece colocar a alma na planta; é o sonho de “devolver” a vida ao paciente que move o trabalho do médico em uma UTI; é o sonho de ver uma criança educada que conduz o trabalho do educador.
Pois bem, a utopia é inerente ao ser humano. Foi ela quem conduziu Mahatma Gandhi a lutar pela independência da Índia. O mundo não seria o mesmo se Santos Dummont não tivesse sonhado. Foi o sonho que levou Nelson Mandela a lutar contra o apartheid na África do Sul, do mesmo modo que foi o sonho de gerir uma grande nação que tornou Barack Obama o primeiro presidente negro da história dos Estado Unidos da América. O cristianismo não seria o mesmo, se Martin Lutero não tivesse sonhado. Joana D’arc sonhou, por isso foi morta na fogueira! Sonhar às vezes custa a vida! Antônio Conselheiro, Zumbi dos Palmares,Tiradentes, Frei Caneca, (é infinda a lista, perdoem-me não poder citar todos…) tornaram-se notáveis porque sonharam e não foram compreendidos (ou melhor, não quiseram compreendê-los!). Mas sonhar é inevitável. Sonhe mesmo, sonhe sempre, sonhe muito…
Ter uma visão idealista das coisas é, talvez, torná-las mais pitorescas. Às vezes a realidade é tão amarga. E ter uma visão romântica parece amenizar esse amargor. Pelo menos no campo das ideias é possível viver harmonicamente, já que a nossa cabeça é a nossa liberdade! Não é pecado sonhar. Ecoam aos meus ouvidos as vozes de Policarpo Quaresma: idealizador de uma pátria perfeita. Foi ele quem sonhou fazer do tupi-guarani a língua oficial do Brasil. Ninguém foi tão visionário! Isso rendeu-lhe um “triste fim”. Entendo ser esse personagem de Lima Barreto o exemplo-mor de que não é proibido sonhar. Enquanto houver sonho, há vida…
A Literatura parece ser esse terreno fértil em que o sonho cai como a mão na luva. Miguel de Cervantes que o diga. A figura do cavaleiro Dom Quixote ao lado do seu fiel escudeiro Sancho Pança é prova legítima de que sonhar é permitido, embora confunda moinhos com gigantes! E por aí vai… Por isso insisto: a vida não é só carpe diem. Viver é também um ato de fé. É crer no invisível. Não dá para viver sem o abstrato, sem o irreal, o que me leva a afirmar que “o homem não morre quando deixa de viver, mas sim quando deixa de sonhar”, desculpe Charles Chaplin!