EXPERIMENTANDO SARAMAGO
Margarete Hülsendeger
publicado originalmente em publicado em 02/09/2009 como <www.partes.com.br/cronicas/mhulsendeger/saramago.asp>
Não sou um ateu total, todos os dias tento encontrar um sinal de Deus, mas infelizmente não o encontro.
José Saramago
Ler é uma daquelas experiências da qual nunca saímos os mesmos. Não importa se o livro é bom ou ruim, ele sempre irá nos transformar, nem que seja pelo simples ato de fechá-lo antes de o termos concluído. No entanto, existem leituras que nos marcam de tal maneira que passam a fazer parte de nossas vidas. Terminamos de ler um livro sentindo que algo de muito especial nos aconteceu.
Recentemente, tive essa sensação ao ler o Evangelho Segundo Jesus Cristo, de Saramago. Confesso, porém, que ao decidir fazer essa leitura senti um pouco de medo. Uma vozinha irritante ficava insistindo para que eu abandonasse essa ideia. Segundo ela, não se tratava de um livro adequado. Nele eu só encontraria blasfêmias e heresias. Argumentos um tanto quanto ultrapassados, mas que, em algumas situações, ainda têm muita força sobre mim, principalmente, porque minha educação foi muito influenciada pelos dogmas da Igreja Católica.
Portanto, com receio, abri o livro e li a frase inicial: “O Sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo,…”. Primeira surpresa. Saramago começa sua história descrevendo uma pintura que representa a crucificação. A riqueza de detalhes é tanta que cheguei a perder o fôlego. Nada escapa à visão critica – e eu diria quase cirúrgica – de Saramago. A sensação é de sermos literalmente transportados para aquela época e lugar que, há séculos, ocupam e assombram o imaginário popular.
A história de Jesus propriamente dita começa mesmo a partir do segundo capítulo. E, com espanto, logo percebi que todo o meu medo tinha sido infundado. A humanidade de Jesus, descrita de forma brilhante por Saramago, não me assustou. Ao contrário. Ela me conquistou.
As passagens sobre a vida de Jesus se sucedem seguindo a cronologia aceita e atestada pelos Evangelhos. Entretanto, Saramago reescreve – ou seria melhor dizer subverte? – muitas dessas passagens. Assim, nessa nova versão, vamos encontrar um José consumido pelo remorso. Uma Maria incapaz de crer na palavra de seu primogênito. Uma Maria Madalena apaixonada e absolutamente fiel ao seu amado. E, finalmente, um Jesus cheio de dúvidas e incertezas. Personagens tão humanos que fica difícil não nos identificarmos com eles.
Existe, no entanto, uma passagem no livro que é, a meu ver, uma das mais instigantes de todo o texto. Nela Saramago descreve o encontro, em meio a um denso nevoeiro e em pleno mar da Galiléia, entre Deus, Jesus e o Diabo. Nesse trecho da narrativa, Jesus, ao ser confrontado com o seu destino, tenta, como qualquer ser humano normal, escapar dele. Deus, porém, encontra-se irredutível. Nem mesmo quando o Diabo lhe faz uma contraproposta, que poderia libertar Jesus, Ele aceita. Seu desejo é um só: Jesus deve de morrer na cruz.
Enfim, são páginas de um diálogo original, onde em certos momentos – não há como evitar – nos questionamos sobre quem é realmente Deus. Ou qual a diferença entre o bem e o mal. E quando, por fim, Jesus aceita o seu destino, faz apenas uma exigência: saber qual será, para a humanidade, o significado do seu sacrifício. E Deus, apesar de tentar fugir da pergunta, é, pela primeira vez, obrigado a ceder.
Durante a leitura do texto de Saramago chegamos a desejar que tudo fosse diferente. Que Deus, descrito como um ser arrogante e voluntarioso, aceite a proposta feita pelo Diabo, retirando dos ombros de Jesus toda a carga de sofrimento que o estará aguardando no futuro. Todavia, ao contrário dos nossos desejos, a história acaba como tem de acabar: Jesus é crucificado.
Entretanto, Saramago, nas últimas linhas de seu texto, ainda nos oferece uma última surpresa. As derradeiras palavras de Jesus, como todos sabem, são um pedido de perdão. Porém, ao contrário da história oficial, o Jesus de Saramago não as lança a Deus, mas à Humanidade, dizendo. “Homens perdoai-lhe porque ele não sabe o que fez”. É difícil não parar para refletir sobre a força dessa frase, aparentemente despretensiosa, mas carregada de significados.
Portanto, concluo fazendo um convite: se você ainda não leu o Evangelho Segundo Jesus Cristo de Saramago, leia. Essa é uma daquelas experiências que devem ser desfrutadas do início ao fim. No entanto, preciso avisar: ela só será possível se você – assim como eu – conseguir vencer o preconceito e mergulhar sem medo nessa obra que na falta de um adjetivo melhor, eu a definiria como simplesmente estimulante. E se você está preocupado sobre como essa leitura possa ter influenciado a minha fé, não precisa se preocupar. Ela, depois de Saramago, está mais forte do que nunca.