Sérgio Choiti Yamazaki1* e Regiani Magalhães de Oliveira Yamazaki**
publicado em 18/07/2009 como <http://www.partes.com.br/educacao/olharbachelardiano.asp>
Gaston Bachelard foi um grande pensador. Estudioso de vários conhecimentos estruturados e consolidados – como a física, a química, a filosofia, a história da formação dos conceitos científicos, a psicanálise entre outros -, ele propõe uma visão crítica com relação a todo paradigma que se estabeleça como verdades absolutas e irrefutáveis, afirmando que a evolução científica deve vir sempre contra algo estabelecido, contra a teoria comumente aceita.
A obra de Bachelard é bastante complexa e inclui numerosos conceitos e ideias fundamentados na história da ciência e em suas interpretações criativas da história da vida.
Neste texto, vamos fazer uma incursão sobre uma das ideias sugeridas e desenvolvidas por Bachelard e que é considerada como uma das mais valiosas de sua extensa produção acadêmica: a ideia de Espírito Científico.
No entanto, não nos preocupamos com a exatidão histórica, cronológica, do conceito. Assim, iniciaremos nossa reflexão citando os livros que foram publicados tomando como palavra-chave, esta ideia.
Em 1934, o professor Gaston Bachelard tem uma obra publicada (em francês) que leva em seu título o termo “espírito científico”: Le Nouvel Esprit Scientifique.
Em 1938, foi publicada uma das obras mais citadas de Bachelard por investigadores da Educação Científica, um livro que também tem no título o termo “espírito científico”; esse título foi traduzido para a língua portuguesa como “A Formação do Espírito Científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento”.
Em 1940, Bachelard publica novamente um livro sob um título que leva o termo “Espírito Científico”. A tradução para o português, na versão brasileira ficaria conhecida como: “A Filosofia do Não – Filosofia do Novo Espírito Científico”.
Como os títulos sugerem, os três livros nos dão uma noção de Espírito Científico. Bachelard aborda o termo através de ilustrações da formação do novo olhar (espírito), de inúmeras situações colhidas na História da Ciência e na observação da afetividade contemplada no cotidiano dos indivíduos.
Mas, o que significa esse termo? Esperamos refletir sobre essa questão discorrendo sobre essa ideia, nas obras de Bachelard, levando em consideração um exemplo adaptado da história da ciência que diz respeito à descoberta das moléculas que compõem os fluidos.
Vamos visualizar o contexto científico do século XIX, através das palavras de Marcelo Gleiser, adaptadas abaixo:
[…] o inglês Robert Brown observou que grãos de pólen boiando em água movimentam-se em um misterioso ziguezague como se estivessem sendo quicados por forças invisíveis. Brown chegou a suspeitar que seu achado tinha algo a ver com o enigma da vida. (GLEISER, sem data)
Brown, embora seja cuidadoso com as possíveis interpretações dessa observação no artigo no qual divulga seus dados, deu o nome de “vivid motion” – movimento enérgico, movimento vívido – ao deslocamento por ele visto, particularmente em partículas da planta Asclepiadea. (BROWN, 1828).
O movimento dos grãos de pólen da planta Clarckia pulchella, em água, visto com a ajuda de um microscópio, foi momentaneamente interpretado por Brown como a descoberta da molécula primitiva da matéria viva (BASSALO, sem data).
Em outras palavras, Brown pensara estar vendo manifestação de vida nos movimentos dos grãos. O Espírito Científico da época de Brown o incitava a concluir que os grãos de pólen se moviam porque revelava algo vivo.
Entretanto, Brown percebeu que matéria inanimada (ou grupo de partículas inorgânicas) também se movia tão rapidamente quanto os grãos de pólen (GLEISER, Ibid.; SALINAS, 2005). O vivid motion, relacionado à vida primitiva, portanto, se tornara uma hipótese pouco sustentável.
Entre 1905 e 1908, surgem 5 artigos de Albert Einstein ( que investigam a dinâmica deste fenômeno (reunidos em EINSTEIN, 1926). É sugerida a ideia de que os fluidos são compostos por moléculas e estas, por sua vez, empurram os grãos de pólen, criando o movimento aleatório observado nas experiências.
Abrindo um parêntese, é importante lembrar que não foi Einstein o primeiro Homem que afirmou que fluidos são compostos por moléculas, ou átomos; filósofos da antiguidade clássica já pressentiam a existência dessa minúscula matéria e as primeiras verificações foram feitas pelo cientista John Dalton (1766-1844). Mas a ideia de molécula era estranha para Dalton. Quando Brown publicou sua observação sobre os grãos de pólen, Dalton tinha 62 anos de idade. (para o leitor interessado em saber mais, sugerimos a leitura do artigo de Carlos Fiolhais – ver bibliografia).
O que aconteceu foi que o Espírito Científico mudou no sentido de que, ao observar um fluido, depois do artigo de Einstein, os cientistas passaram a pensar em moléculas em movimento caótico, o que não poderia ocorrer nas pessoas contextualizadas no século XVIII, pois essa visão não tinha sido construída de forma sistematizada. Havia apenas indícios de que átomos e moléculas poderiam existir.
Assim, o Espírito Científico nos oferece uma forma de ver o mundo e com ela contemplamos a natureza. Há alguns anos, foi publicado um livro que narrava o devaneio de um cientista, ao sentar em frente ao mar: via milhares de partículas interagindo-se entre si, tal como a Física Quântica descrevia. Era a visão científica que tanto estudara e que, arraigada em seus pensamentos, se manifestara em imagens flutuantes, que foram selecionadas claramente, mostrando que, ao aceitar um conhecimento, acabamos por aceitar um Espírito Científico.
Essa noção do conceito de “espírito científico” nos leva a pensar que até o que era “de fato” passa a ser relativo, pois depende de teorias com as quais vemos um fenômeno, cotidiano ou não. Nesse sentido, perguntar se algo é fato, não tem sentido, pois há vários significados que o contexto lhe impõe. Uma das definições do dicionário Aurélio é de que é algo que realmente existe, que é, portanto, real. Mas, como provoca a história da ciência, moléculas existem de fato? A História da Ciência mostra que as teorias científicas, os paradigmas, mudam com o tempo, estão sempre modificando visões de mundo; e muitas vezes conceitos e ideias básicos, que sustentam toda uma determinada teoria, são descartados, pois mudam o sentido das principais questões que preocupam as pessoas. Por exemplo, no século XVIII, perguntar do que era feita uma molécula, por que existiam, se eram de diferentes formas para fluidos diferentes, perderia o sentido para cientistas hoje famosos como Mach ou Ostvald porque, para eles, ela não existia. Assim, essas questões não tinham sentido porque simplesmente não existiam no pensamento desses estudiosos, não fazia parte de seu arsenal de problematizações a serem respondidas. Teria muito mais sentido questionar por que os grãos de pólen passavam a manifestar vida em fluidos; essa era a problematização a ser respondida. Com a mudança de paradigma, muda a pergunta, muda o foco e muda a resposta. Muda o Espírito Científico. Muda o fato.
Como o próprio Bachelard afirma (no livro A Formação do Espírito Científico), de modo grosseiro há três grandes períodos no pensamento científico, o estado que ele chama de pré-científico – da antiguidade clássica até o século XVIII -, o estado científico – fins do século XVIII até o século X – e o novo espírito científico – com início em 1905 através das publicações de Einstein que reconstroem conceitos ora tidos como fundamentais para as ciências.
Vivemos, portanto, a era do Novo Espírito Científico, embora já com uma espantosa mudança nos paradigmas se compararmos com as descobertas do início do século XX. Os cientistas de hoje, portanto, veem os fenômenos de acordo com esse novo paradigma.
O Espírito Científico, então, não se trata apenas de dar explicações pontuais a determinados acontecimentos; é todo um conjunto de leis, raciocínios, e noções que são adquiridas com as teorias em vigor em determinado contexto histórico. Para atingi-la, é preciso mudar tanto quanto mudam as teorias, é preciso, pois, sempre estar sujeito a novas significações de mundo. Como nos ensina Bachelard, ao dizer não às “primeiras impressões”, damos o primeiro passo para aceitar o novo.
Ao englobar, portanto, as revoluções científicas, o Espírito Lúcido percebe que deve mudar a cada novo conhecimento adquirido: analogicamente (apesar de Bachelard fazer certas críticas às analogias), na sala de aula, Bachelard afirma com toda a autoridade que lhe cabe, que o professor deve sempre voltar à escola, pois nunca está definitivamente formado.
FALAR DE ENSINO OU EDUCAÇÃO SOB O ESPÍRITO CIENTÍFICO
Bibliografia
BACHELARD, Gaston. A Formação do Espírito Científico. Tradução do original em francês de 1938. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
BACHELARD, Gaston. A filosofia do Não. Tradução do original em francês de 1940. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
BACHELARD, Gaston. Le Nouvel Esprit Scientifique. Paris: Presses Universitaires de France, 1934.
BASSALO, José Maria. Movimento Browniano, Einstein e Bachelier. In: http://www.seara.ufc.br/folclore/folclore45.htm. Acessado em 08/06/2009.
BROWN, Robert. A brief account of microscopical observations made in the months of June, July and August, 1827, on the particles contained in the pollen of plants. Edinburgh new Philosophical Journal, p. 358-371, July-September, 1828.
EINSTEIN, Albert. Investigations on the theory of the Brownian movement. Edited by R. Fürth and translated for english by A. D. Cowper. New York: Dover Publications, 1926.
FIOLHAIS, Carlos. A disputa de Boltzmann com Ostwald e Mach. Disponível em: http://dererummundi.blogspot.com/2009/01/disputa-de-boltzmann-contra-ostwald-e.html. Acessado em 20/05/09.
GLEISER, Marcelo. Com 3 artigos, Einstein reinventa luz, tempo, espaço e natureza da matéria. Disponível em: http://www.las.pucpr.br/anderson/arquivos/iiiii.pdf. Acessado em 10/06/2009.
SALINAS, Silvio, S. A. Einstein, o Atomismo e a Teoria do Movimento Browniano. Física na Escola, v. 6, n. 1, 2005.
1*Professor de Estágio Supervisionado em Ensino de Ciências da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. E-mail: sergioyamazaki@uems.br
**Professora Supervisora no Programa de Iniciação à Docência – PIBID – da CAPES. Mestranda em Ensino de Ciências na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: regianibio@gmail.com
Como citar este artigo:
YAMAZAKI, Sérgio Choiti e YAMAZAKI, Regiani Magalhães de Oliveira. Gaston Bachelard e a noção de espírito Científico.Revista P@rtes (São Paulo). Julho de 2009. ISSN 1678-8419. Disponível em <>