Fernanda Gabriela Soares dos Santos*e Décio Luciano Squarcieri de Oliveira**[1]
publicado em 26/06/2009 como www.partes.com.br/educacao/milk.asp
“Se Deus é menina e menino
Sou Masculino e Feminino”
Pepeu Gomes
Dentre os concorrentes para o Oscar 2009, podemos destacar o brilhante Milk. Biografia do primeiro político a assumir publicamente sua orientação sexual. Interpretação antológica do ator Sean Penn, é possível também através da história do político fazer aproximações com a história do país. O ator merecia o prêmio tanto pela brilhante interpretação quanto pela maneira como se entregou ao trabalho.
Há tempos não saíamos do cinema tocados pela dor da injustiça. Como não se solidarizar com a luta de Harvey Milk? Pois, é, caros leitores, ainda que muitos acreditem que vivamos em um mundo onde a luta pelas minorias oprimidas já não caibam, ontem foi assassinado um rapaz que estava próximo à Parada Gay de São Paulo. Embora o noticiário tenha se centrado na idéia de comprovar a veracidade do rapaz estar ou não na Parada, é crucial o questionamento: Podemos matar ou agredir alguém por não aceitarmos sua orientação sexual?
A trama inicia com o político contando-nos a sua história. Era véspera de seu aniversário e, a partir daquele momento, ele resolve lutar pelos direitos dos homossexuais. Como pano de fundo da história, podemos situar a Guerra do Vietnã. Milk resolve mudar-se com o seu namorado para o bairro de São Francisco, onde abrem uma loja que acaba se tornando símbolo da luta gay. Interessante que a sua luta também se somam a luta de outras minorias, pois seu discurso era
de um mundo mais próximo a igualdade de todos.
Dispensável dizer que o político tocou fundo nas feridas de seus contemporâneos. O que um cabeludo gay tem a dizer sobre as famílias dos Estados Unidos? O movimento gay sempre foi considerado um atentado a sólida instituição familiar, calcada nos valores tradicionais não raro ditados pela igreja católica.
Milk perdeu seguidas eleições e demorou para que seu discurso chegasse aos corações de seus eleitores. Sua orientação sexual incomodava muito mais do que sua luta. Mesmo quando seu namorado ameaçou deixá-lo em função da política, Harvey Milk foi perspicaz: sabia que sua luta traria sementes para as gerações vindouras.
Sean Penn foge do estereótipo tradicional do gay no cinema. Sua desenvoltura mostra ter atingido um grau que poucos conseguiram na arte: o personagem nem é irritantemente afetado, nem tampouco carrega na voz e no gestual. Seu personagem é delicado sem ser piegas, é doce sem ser meloso. É Sean Penn.
Para DUBAR, (2006, p. 84): “Ser um homem ou uma mulher está a começar ser uma questão de história, de projeto, de percurso biográfico, de “construção identitária ao longo da vida”.”
Os próprios constructos sociais vão nos desenhando o que é bom ser hoje, qual tipo de orientação sexual é melhor adotar. Basta olharmos para a Grécia Antiga, para as relações que se estabeleciam. E o mais importante de tudo é lembrarmos sempre que tais relações são, antes de mais nada, construídas socialmente.
Quem estabeleceu e nos impôs que o homem portador de uma virilidade X é mais interessante que um homem mais delicado. Boa educação masculina é vista quase como sinônimo de homossexualidade, tamanho o grau de ignorância em que vivemos. E nosso tempo ainda presencia a barbárie de alguém ser assassinado pela sua orientação sexual.
Tais crendices sociais são construídas por nós mesmos nos distintos espaços em que atuamos. É nosso dever, portanto, enquanto educadores comprometidos lembrarmos aos nossos alunos a tarefa que a nós parece a mais fundamental da educação: o respeito a alteridade, ou àquilo que me pareça alteridade. Independente do que acham dos seus colegas ou da aprovação ou desaprovação pelo que fazem ou são, a palavra de ordem é respeito.
Nesse sentido DUBAR (2006, p. 65) afirma-nos:
Ao longo dos últimos trinta anos, a luta contra o sexismo marcou pontos e a virilidade tradicional (crença na superioridade dum princípio masculino, machista, sobre o feminino) já não é um valor partilhado. Uma análise dos manuais escolares, obras literárias, cinematográficas ou televisivas, de artigos de jornais permitiria mostrar evoluções, mesmo revoluções, mas também sobrevivências, nas representações das relações entre os sexos.
Mesmo que hoje estejamos mais perto de uma discussão seja de igualdade ou até mesmo de diferença de gêneros para afirmar que não exista a superioridade, sabemos que ainda existem divisões tradicionais. Mesmo que, por exemplo, os homens hoje estejam mais presentes nas divisões dos trabalhos domésticos, esses ainda continuam tendo maior atuação feminina. Mesmo as mulheres que trabalham fora de casa, ainda a essas lhes cabe o trabalho doméstico.
Pensemos na cena clássica quando jantamos com casais de amigos heterossexuais, não raro as mulheres dos casais não só coziam como também lavam os pratos. Os pratos são tradicionalmente deixados para que sejam lavados pelas mulheres, bem como se existirem crianças por perto também são cuidadas por elas.
Naturalmente que a situação é muito melhor que há alguns anos. Contudo, é preciso que reconheçamos que a maior parte das tarefas continua sendo executadas pelas mulheres, naquilo que concerne às exigências do lar, mesmo que tenha havido um ingresso maciço de mulheres no mercado de trabalho.
Costumávamos fazer um exercício com os nossos alunos no ensino fundamental: ao realizar tarefas que deixavam a sala de aula suja, trazíamos a vassoura e perguntávamos quem se dispunha a varrer. Sempre eram as meninas. A partir deste evento, problematizávamos com a turma os motivos de serem as meninas, quem tinha o costume de auxiliar em casa, e aqueles que auxiliavam o que de fato faziam. A partir de uma atividade aparentemente simples trazíamos à discussão debates de ordem histórica, política e econômica. Também os alunos traziam os seus saberes sobre as relações de gênero estabelecidas socialmente.
Trazemos a sugestão da tarefa como forma de demonstrar que mesmo que façamos a exibição do filme na escola e não queiramos abordar tão ferozmente o assunto, partimos de pequenos pressupostos já vivenciados pelos alunos. Não precisamos levantar bandeiras ou obrigar aos alunos aceitarem nosso discurso sobre igualdade. Necessitamos sim provocar a reflexão, inquietar os nossos alunos. Dizer que as bases que sempre parecem sólidas, a todo momento podem precisar de revisão. Esse é o nosso compromisso. O desassossego.
Referências
DUBAR, C. A Crise das Identidades: A Interpretação de uma Mutação, Edições Afrontamento: Porto, 2006.
[1] *Professora de Filosofia da Rede Municipal de Formigueiro, RS, mestranda em Educação pelo PPGE/UFSM, membro do grupo GEPEIS(Grupo de Pesquisa em Educação e Imaginário Social).
** Professor de História da rede pública estadual de Itaara, RS, professor da UAB, mestrando em Educação pelo PPGE/UFSM, membro do grupo GEPEIS(Grupo de Pesquisa em Educação e Imaginário Social).