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Educação em Rousseau e Vygotsky: pontos e contrapontos

 

Adriane Cenci[1]

publicado em 11/05/2009 como www.partes.com.br/educacao/rousseau_vygotsky.asp

Adriane Cenci é educadora especial. Mestranda do curso de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria. e-mail: adricenci@hotmail.com

O Iluminismo (século XVIII) é um movimento filosófico, intelectual e científico que apresenta algumas características marcantes: racionalismo, cientificismo, antiabsolutismo, anticlericalismo, defesa das liberdades individuais, rejeição às tradições (CAMBI, 1999). Vem questionando as ideias vigentes na Idade Média – Era das Trevas.

Embora se aponte tais características, os pensadores iluministas são divergentes, isto é, o Iluminismo é um movimento no qual diferentes concepções surgem, ainda que apresentem uma “essência” em comum. Segundo Dalbosco (2009a) as diferentes posições filosóficas estão permeadas por uma tensão crucial entre esperanças de novidades extraordinárias – geradas pela razão – e por angústias de catástrofes naturais e sociais eminentes.

No cenário do Iluminismo destacam-se, dentre outros, os seguintes pensadores: Locke (1632-1704), Kant (1724-1804), Voltaire (1694-1778), Rousseau (1712-1778), Montesquieu (1689-1755), Diderot (1713-1784), D’Alembert (1717-1783). Há nesses, influências do pensamento de Descartes (1596-1650), Spinoza (1632-1677) e Newton (1643-1727).

Como cada autor traz contribuições distintas ao Movimento Iluminista, e compreendendo a dificuldade de, num primeiro momento, contrapor tantas diferentes ideias à Teoria Sócio-Histórica que venho pesquisando, proponho aqui elencar para a análise o pensador iluminista que entendo como o que mais influenciou a Pedagogia: Jean Jaques Rousseau – o “pai da Pedagogia”.

Ao pensar no que defendeu Vygotsky (1896-1934) e no que propôs Rousseau (1712-1778) há de primeiramente levar em consideração a época que cada autor viveu. A obra de ambos é contextualizada pelo momento histórico que presenciaram: Vygotsky no auge da Revolução Russa, na defesa do socialismo; Rousseau na luta contra as “trevas” da Idade Média, o poder da Igreja, contra o Absolutismo do Antigo Regime.

Dessa forma, se aqui apresento pontos em comum e contradições entre Vygotsky e Rousseau não é para dizer “quem está certo”, uma vez que ambos, dentro do cenário que viveram, apresentam contribuições à educação.

Parto da concepção de educação que Vygotsky apresenta, principalmente, em A Formação Social da Mente (1991) e que Rousseau elabora em Emílio ou da Educação (2002). No Emílio Rousseau fala da educação do ser humano, em outras obras trata da educação do cidadão; aqui farei referência à concepção posta no Emílio, esta foi a que influenciou o pensamento pedagógico moderno, conferindo a Rousseau o “título” de “pai da Pedagogia moderna” (CAMBI, 1999).

“Pai” da Pedagogia porque Rousseau percebe a infância da criança, isto é, não a vê como um “adulto em miniatura” – pensamento predominante na época. Esse olhar a criança na sua singularidade, marca as teorias pedagógicas posteriores; Vygotsky também segue esse princípio. Rousseau “inaugura” no Emílio a visão de fases diferenciadas na vida do sujeito que correspondem a características distintas e que levam a processos educativos próprios para cada período, isto é, criança não deve ser educada como se fosse um adulto.

O “como” se educa é aspecto no qual Rousseau e Vygotsky adotam posições opostas. Rousseau ressalta a importância da natureza no processo educativo, em contrapartida Vygotsky destaca o papel da sociedade, do grupo cultural.

No Emílio Rousseau defende a “educação natural”, Cambi (1999) define com clareza essa proposta:

A educação deve ocorrer de modo “natural”, longe de influências corruptoras do ambiente social e sob a direção de um pedagogo iluminado que oriente o processo formativo do menino para finalidades que reflitam as exigências da própria natureza. Cabe lembrar, porém, que “natureza” no texto de Rousseau assume pelo menos três significados diferentes: 1. como oposição àquilo que é social; 2. como valorização das necessidades espontâneas das crianças e dos processos livres de crescimento; 3. como exigência de um contínuo contato com um ambiente físico não-urbano e por isso considerado genuíno” (CAMBI, p.346, 1999).

         A citação acima condensa várias ideias apresentadas nos cinco livros da “novela pedagógica” que narra a formação de um menino, Emílio, desde o nascimento até o casamento.

Destaco da obra a função do preceptor que deveria livrar a criança do poder corruptor da sociedade. “Tudo é perfeito quando sai das mãos do autor das coisas: tudo é degenerado pelas mãos do homem” (ROUSSEAU, 2002). A criança seria boa por natureza e deveria ser educada para preservar essa “natureza pura”. O princípio do “bom selvagem” expõe uma visão pessimista em relação à socialização, esta depravaria moralmente o sujeito.

Além da “educação natural”, mas ainda dentro desse princípio, Rousseau propõe a “educação indireta” e a “educação negativa”.

         A “educação indireta” estabelece que a criança aprende em contato com a natureza e com as coisas. “Nascemos sensíveis e desde nosso nascimento somos afetados de diversas maneiras pelos objetos que nos rodeiam” (ROUSSEAU, p.90, 2002).

A “educação negativa” esclarece que não se deve intervir, mas sim apenas acompanhar o desenvolvimento da criança e mantê-la distante do que pode vir a corrompê-la. O processo educativo não deve acelerar o desenvolvimento, mas deixar que a natureza o conduza.

O conceito de “educação negativa” é oposto ao conceito de “Zona de Desenvolvimento Proximal” – ZDP. Vygotsky (1991) enfatiza o papel da intervenção para a aprendizagem e desenvolvimento. A intervenção atingiria os processos que estão em amadurecimento, trazendo-os à tona; a ZDP caracteriza as funções que o sujeito não alcança sozinho, mas que com o auxilio de alguém mais experiente é capaz de desenvolver.

Ao contrário de Rousseau, que via na natureza o principal meio de educação, Vygotsky acredita estar na sociedade, na interação com o grupo cultural todo o “motor” do desenvolvimento humano:

Podemos concluir que, para Vygotsky, o desenvolvimento do sujeito humano se dá a partir das constantes interações com o meio social em que vive, já que as formas psicológicas mais sofisticadas emergem da vida social. Assim, o desenvolvimento do psiquismo humano é sempre mediado pelo outro (outras pessoas do grupo cultural), que indica, delimita e atribui significados à realidade. Por intermédio dessas mediações, os membros imaturos da espécie humana vão pouco a pouco se apropriando dos modos de funcionamento psicológico, do comportamento da cultura, enfim, do patrimônio da história da humanidade e de seu grupo cultural (REGO, p.60-61, 2002).

         Rousseau não usou o termo “mediação”, mas acredito que o papel que o preceptor exercia na educação do Emílio pode ser comparado ao de mediador a qual se refere Rego (2002) na citação anterior: “delimita e atribui significados à realidade”.

         Contudo, Rousseau pretendia que essa “mediação”, que a intervenção fosse imperceptível, algumas afirmações comprovam tal pretensão: “Que ele julgue ser sempre o chefe, mas que o chefe seja sempre você” (ROUSSEAU apud CAMBI, p. 352, 1999). “Não há dúvida que ele só deve fazer o que quiser; mas só deve querer aquilo que você quer que ele faça” (ibidem). “Não deve dar um passo que você não tenha previsto, não deve abrir a boca sem que você saiba o que vai ser dito” (ibidem).

         Tais afirmações deixam explícita a dialética entre autoritarismo e espontaneismo presentes na obra de Rousseau, uma vez que o preceptor deve conduzir o aluno sem privá-lo da liberdade.

Contra o autoritarismo pedagógico e a favor da socialização democrática, a educação natural precisa mostrar o quanto é importante que a criança seja conhecida e respeitada em seu mundo. Mas contra o espontaneismo pedagógico e para que tal socialização seja alcançada, ela deve deixar claro também o quanto a intervenção do adulto é decisiva no sentido de educar a liberdade desregrada da vontade da criança, indicando limites à sua ação no mundo, contribuindo, deste modo, à formação, conflitivamente sadia, da indispensável relação da criança consigo mesma e com os outros. (…) Em síntese, para livrar-se da objeção acima Rousseau precisa mostrar que não existe liberdade sem regras – pois, educação natural tem a ver com a idéia da liberdade bem regrada (liberte bien réglée) – e, em última instância, que não pode existir uma educação que não seja minimamente diretiva (DALBOSCO, p.6, 2009b).

         Dalbosco (2009b) atribui à objeção autoritarismo/espotaneismo um caráter de aporia, isto é, uma questão insolúvel, um paradoxo, momento de auto-contradição (E-DICIONÁRIO DE TERMOS LITERÁRIOS, 2009).

         Vygotsky, uma vez que considera a mediação um aspecto fundamental, poderia ser levianamente interpretado como defensor de uma postura diretista, intervencionista; entretanto ao enfatizar o papel da intervenção no desenvolvimento seu objetivo é trabalhar com a importância do meio cultural e das relações entre indivíduos. Ele não vê no educando um receptor passivo, pois o indivíduo reconstrói, reelabora os significados que são transmitidos pelo grupo cultural (OLIVEIRA, 1997).

         De modo geral percebo que enquanto Rousseau tem uma visão negativa da intervenção da sociedade, acreditando que ela corromperia a bondade natural da criança, Vygotsky vê na sociedade o meio propulsor do desenvolvimento, pois a interação com os outros membros da cultura possibilitaria a aprendizagem.

Dessas concepções opostas da influência da sociedade deriva também a importância (Vygotsky) ou desvalorização (Rousseau) da escola:

Não considero, como uma instituição pública, estes ridículos estabelecimentos que chamamos de Colégios. Tampouco levo em conta a educação do mundo – como esta educação tende a dois fins contrários, não acerta nenhum – que é propícia a fazer homens duplos, cujas intenções parecem sempre altruístas, enquanto nada propõem a não ser beneficiar a si mesmos. Ora, como estas demonstrações são comuns a todos, não enganam ninguém. São cuidados que se tornam inúteis (ROUSSEAU, p.93, 2002).

         Rousseau (2002) ao falar de dois fins contrários que se propõe a educação escolar está se referindo à educação do homem e à educação do cidadão; ele defende a impossibilidade da proposição de um ensino que contemple ambas. “Forçado a combater a natureza ou as instituições, cumpre optar entre fazer um homem ou um cidadão, porquanto não se pode fazer um e outro ao mesmo tempo” (ROUSSEAU apud GADOTTI, p.95, 1999).

         Em contrapartida, Vygostky não percebe na educação escolar oposição entre homem e cidadão. Ele acreditava que “o aprendizado escolar produz algo fundamentalmente novo no desenvolvimento da criança” (VYGOTSKY, p.95, 1991). Dessa forma, parece que se a educação é fundamental no desenvolvimento da criança, deve o ser em ambos os aspectos: para torná-la homem e cidadão, sendo estes inseparáveis.

         Novamente chamo a atenção ao momento histórico que cada autor presenciou. Vygotsky viveu na Rússia revolucionária, com os ideais do marxismo, socialismo “fervilhando”, nesse contexto a instituição escolar deveria “servir” para formar homens e também cidadãos dentro da proposta marxista emergente. Rousseau viveu a tensão causada pelo advento da razão e a revolução burguesa que punha “em cheque” a moral até então posta e o Absolutismo; nesse contexto parecia-lhe impossível uma educação que tornasse a criança, ao mesmo tempo, homem e cidadão.

         Dessa forma, não cabe aqui dizer se Vygotsky e Rousseau estavam “certos ou errados”. Concluo esclarecendo que ambos foram coerentes com o pensamento e o momento histórico que vivenciaram.

REFERÊNCIAS:

CAMBI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.

DALBOSCO, Cláudio Almir. O Iluminismo pedagógico de Rousseau. Disponível em: < http://www.anped.org.br/reunioes/31ra/1trabalho/GT17-4023–Int.pdf>. Acesso em: 8 abril, 2009a.

_________ Primeira infância e educação natural em Rousseau: as necessidades da criança. Disponível em: <http://www.pesquisa.uncnet.br/
pdf/educacaoInfantil/PENSAMENTO_PEDAGOGICO_ROUSSEAU_EDUCACAO_%20INFANCIA.pdf
>. Acesso em: 8 abril, 2009b.

E-DICIONÁRIO DE TERMOS LITERÁRIOS. Disponível em: <http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/aporia.htm>. Acesso em: 8 abri,  2009.

GADOTTI, Moacir. História das idéias pedagógicas. São Paulo: Ática, 1999.

OLIVEIRA, Martha Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 1997.

REGO, Teresa Cristina. Vygotsky: uma perspectiva histórico-cultural da educação. 14ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

ROUSSEAU, Jean Jaques. Seleção de textos, Patrícia Piozzi. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

[1] Educadora especial. Mestranda do curso de Pós Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria. e-mail: adricenci@hotmail.com

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