Contos Cultura

Vida

Rafael de Andrade

publicado em 20/03/2009

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“Já há algum tempo, sinto uma espécie de repugnância em conformar meus atos e meus pensamentos a uma regra moral, qualquer que ela seja. Eu obedeço a outra força.” Dostoiévski

 

Sofria duma perturbação estranha. Enquanto em crise queria que as pessoas fossem tão infelizes quanto eu. A inabalável felicidade dos outros acentuava ainda mais meu estado. O casal, aparentemente apaixonado, refletia minha inquietação em cada sorriso. Os amigos me davam a sensação de que todos estavam ali para trair um ao outro e para me matar logo em seguida. Sofria desta doença desde a infância. Tenho total certeza que minha doença é causada por excesso de estudos ou de vida afinal, sempre fui considerado cheio de vida.
Ao completar certa idade fui morar onde também residiam outros jovens, arruaceiros, vagabundos, usuários de drogas e viciados em jogos de azar. Enquanto me dedicava aos estudos, nas horas vagas lia repetitivamente, para meu prazer, os mais variados livros. Escrevia com certa dificuldade devido a minha falta de criatividade. Não consigo ser como os escritores que leio e isso me enfraquece. Sou péssimo leitor e ainda pior como escritor. No meio da noite ficava escutando as conversas dos meus vizinhos. Conversa que é extremamente inútil e dolorosa para mim. Os assuntos tornam a se repetir por muitas horas. Os risos que seguem por horas não me deixam dormir. A felicidade deles era minha tristeza, minha insônia.
Na universidade, sentava por horas a fio assistindo aulas. Aulas que pareciam nunca terminar. Quando terminavam ficava mais triste do que o normal. As pessoas me olhavam com estranheza, me encaravam por muito tempo, riam escancaradamente quando me aproximava. Me perseguiam por alguns minutos para estudar o que sua felicidade causava em mim, riam um pouco mais e se afastavam, se cansavam do brinquedo.
Deitava no chão do apartamento me sentia num hospício, sozinho, com medo ou sem vontade conversar com ninguém. Abraçaria um animal de pelúcia ou de estimação com grande ternura. Em silêncio me levantei e sentado comecei a ouvir a conversa dos vizinhos.
Horas de leitura e sem sono, batidas fortes em minha porta me fizeram sair do habitual transe em que me encontrava nestas horas. Pensei em não abrir, apostaria tudo que era apenas mais um bêbado que tinha errado de porta e perturbava minha leitura.
Resolvi abrir. Afinal nada poderia ser pior do que esse tédio. Excitado e com medo abri a porta. Uma mulher bêbada me pedia para entrar e ficar por aquela noite. Deixei entrar.
Deitou-se no sofá e aceitou minha bebida. Sonolenta relatou o que ocorreu na festa, o quanto bebeu, como foi expulsa do quarto por não participar do “jogo” que eles queriam. Ouço tudo e resolvo dormir em minha cama cedendo o sofá e um cobertor para ela. Estava sem vontade de dormir, mas fui assim mesmo. Não consegui dormir. Antes do amanhecer ela deitou na minha cama. Transamos. Quando acordo ela ainda está comigo, me observando com aqueles olhos escuros enquanto seus dedos desenham em meu peito palavras incompreensíveis.
Quero te pedir uma coisa. Somente uma coisa. Disse que sim. Ela podia me pedir qualquer coisa. Pediu-me que matasse os meus vizinhos. Fraquejei. Mas compreendi.
Uma faca de cozinha e algumas batidas na porta do vizinho. Quem abriu estava muito bêbado. Entrei e observei que ele era o único ainda em pé. Perguntou o que eu queria e foi se deitando no sofá. Assim que deitou cortei o pescoço dele, repetindo nos outros quatro. Vendo a dor, a agonia deles, percebi que estava feliz.
Voltei ao apartamento. Ela havia sumido. Sozinho, compreendi que a dor do outro era minha alegria. Sentei no sofá, fumei um cigarro, apaguei no braço e gostei do que senti, fiz um café e bebi de uma vez, queimando a língua, a garganta, e senti prazer nisto. Cortei meus pulsos. Corte pequeno, corte que acreditei que não me mataria. Depois desse, cada tentativa de suicídio me dava um prazer enorme, muito maior do que ver a desgraça dos outros. Fiquei viciado em sentir dor.
Era um vício como qualquer outro. Comecei por pequenos cortes, pequenas doses de veneno. Agora os cortes se tornaram imensos, mais violentos, o prazer aumentou muito e já não me satisfaço com pouco veneno. Resta agora continuar toda essa delícia com os outros vizinhos. A vida começa agora.

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