Contos Cultura

O escritor e o motoqueiro

Giovani Iemeni

publicado em 16/03/2009

www.partes.com.br/contos/escritoremotoqueiro.asp

Ontem, depois de muito tempo maquiando minha depressão (que é hormonal, física e real) com o sorriso amarelo da falsidade, acalmando meus desgostos com maciças doses de reclusão, me senti satisfeito, eu não estava atrasado nem devedor. Levei os arquivos do livro para a editora, paguei as contas, as idéias estavam no lugar, aquela sensação opressiva de que tem algo errado me dava uma folga.
O dia estava lindo, o sol quente no céu azul, o vento refrescante brincava com os cabelinhos dos meus braços, que ficam estendidos enquanto piloto minha motoca. Eu tinha resolvido uma sinuca em que meti o personagem Mão Branca no conto que andava escrevendo, a solução era tão boa quer resolvi acelerar para escrever logo a história.
O carro à minha frente iria atravessar um cruzamento, havia espaço suficiente, porém a motorista (sim, tive tempo de olhar o condutor) resolveu parar, ali, de sopetão, quase peando as rodas. Eu contava com sua aceleração, iria passar com a moto no lugar em que o carro não estaria mais. Estava a 04 metros do carro, a 60 km/h. Ainda pude pensar: putz, bastou ficar satisfeito por alguns segundos, será perseguição?
Eu ia encaixotar na traseira do gol. Meu corpo voaria por muitos metros antes de beijar o asfalto. Eu previa todo o incômodo nos próximos meses, fraturas, hospitais, dores, médicos, invalidez , se eu não morresse, é claro. Minha única saída seria realizar uma manobra bem difícil, mas que era comum na época da bicicleta de garoto: a derrapada! Não tive dúvida e reagi. Joguei de lado a roda de trás enquanto a travava, juntei o freio da frente no máximo, ao mesmo tempo em que deitava o corpo para o lado oposto da roda traseira. O chiado dos pneus parecia um grito desesperado, o meu, íntimo.
Parei com a roda da frente tocando levemente o para-choque da infeliz freadora, que partiu com seu carro sem imaginar o apuro que me fez passar. Quase quis ter deixado explodir a moto em sua traseira, ao menos ela ficaria atenta enquanto dirige.
– bem, não morri! – Consegui murmurar. – qual a próxima?
Engatei a primeira e sai. O vento voltou a me acalmar, o ronco do motor mostrava que tudo funcionava corretamente. No serviço, me dediquei às coisas diárias: reguei as plantas da repartição, bebi um café, conferi os emails, bati papo, apontei uns lápis. Desci para um cigarro, mas já que não fumo, fiquei bundando pelo Venâncio 2000.
Vi um sujeito numa antiga XL250. Me aproximei para apreciar a raridade, conservadinha, pintada de preto. Ele me viu, puxou papo. Motoqueiro é tudo igual, conversador, adora salivar sobre as máquinas. Eu também babava.
– a minha tá naquele estacionamento. – Apontei com o nariz.
– que moto é?
– CB450 com guidão seca-sovaco e baús de “puliça”.
– uau. – Ele estendeu a mão num cumprimento animado. – você é dos meus. clássico!
Marcamos um rolé, trocamos telefone e nos despedimos. Logo meu aparelho tocou.
– uau, tua moto é mais bonita que uma harley! – Ele falou que estava montado nela e o flanelinha, meu broder, o ameaçava com um porrete. – diz pro teu segurança que sou limpeza. – O telefone trocou de mãos.
– Cascão, fica frio. – Falei. – o motoqueiro é parceiro. – Ele concordou e devolveu o telefone.
– uau, é linda, linda. – Repetiu o motoqueiro.
É mesmo, pensei, mas respondi “bondade sua”. Ele ficou uns cinco minutos exaltando-a. Fiquei todo satisfeito, até pensei no livro que está na editora, sonhando que seja um sucesso.
Hoje, depois de paquerar uma XT660 da Yamaha num sinal da W3, voltei a me divertir com os cabelinhos dos meus braços. Terminara o conto, tudo certo na editora, a depressão continuava longe. Me sentia até mais que satisfeito, estava mesmo é feliz. Sorri dentro do capacete.
De repente, um “abeleão” (preto, gigantesco) atingiu meu pescoço como um tiro. Tô acostumado com besouradas e outras insetadas, mas aquele não só me acertou como também subiu pelos meus cabelos, andou pela minha cabeça e se alojou no meu ouvido esquerdo. Senti toda a movimentação extremamente nervoso, o capacete impedia que eu acessasse o bicho para expulsá-lo com um piparote (não mato nada que não mereça morrer. Aquele inseto, coitado, até já havia sido atropelado por mim, eu não lhe faria mais mal). O medo era que ele se irritasse com a carona e me ferroasse.
Parei a moto, tirei o capacete, puxei o invasor da orelha e o soltei pelo ar. Ele voou livre, satisfeito, percebi pelo seu zumbido. Gosto de ser magnânimo.
– epa. – O zumbido continuava no meu ouvido. Limpei a aurícula novamente. Nada. Percebi, então, que era mais um simples zumbido, era um aviso da Força, alguma coisa iria acontecer. Voltei para a moto, pianinho, atento a cada movimento ao meu redor.
Um engarrafamento me fez rodar apreensivo pelo corredor de carros. Vi que a causa era um acidente. Quando cheguei mais perto, o zumbido pareceu aumentar.
– uau. – Resmunguei. Uma moto havia se esborrachado na traseira de um gol, exatamente como aconteceria comigo se eu não tivesse conseguido fazer a derrapada. Eu pressentia algo mais, o zumbido continuava. Olhei mais atentamente e vi que era a XL250 do motoqueiro de ontem. – o cara sobreviveu? – Gritei ao bombeiro, que balançou tristemente a cabeça.
Segui meu caminho. O zumbido sumira. A satisfação também. Eu teria que voltar a lutar contra a depressão, sentia que ela flutuava ao meu redor como uma nuvem carregada de desânimo.
Levantei mais uma vez a guarda, é minha defesa social contra as vicissitudes. Voltarei à minha reclusão, aceitarei meus desgostos. A contraparte de esquecer as dificuldades é o relaxamento que enfraquece, é a facilidade que amolece. Toda a tensão depressiva que me enche de rugas também me mantém atento aos atalhos traiçoeiros, às facilidades superficiais. O zumbido irritante que alerta sobre as próprias ações enganadas, manterei no volume máximo, não posso deixar de escutá-lo quando surgir. Ele me salvará, eu confio na Força.

 

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