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A dor no filme “Última Parada 174”

Fernanda Gabriela Soares dos Santos e Décio Luciano Squarcieri de Oliveira

 

publicado em 15/01/2009 como www.partes.com.br/educacao/parada174.asp

 

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Fernanda Gabriela Soares dos Santos Mestre em Educação pelo PPGE/UFSM, professora da FISMA( Faculdade Integrada de Santa Maria). fernandagssantos@yahoo.com.br

Convidamos a assistir a esse filme, todos aqueles que não têm medo de ver a arte enquanto inquietação. Não é uma comédia romântica e o final, pasmem não é nenhum pouco feliz. O episódio todos conhecemos através do show que a mídia deu mostrando–nos o dia inteiro o ônibus sendo assaltado. Naquele exato momento, a mídia fez por nós a escolha: elegeu quem seria o grande ator do espetáculo, para quem torceríamos e quem seria o bandido, que só por coincidência era negro, pobre, viciado e esteticamente considerado feio.

Não estou defendendo ou condenando ninguém, nenhum de nós naturalmente gostaria de estar naquele ônibus. A questão que coloco é o real motivo daquele ter sido o grande espetáculo do dia, se vários ônibus são assaltados e outros crimes estavam também acontecendo no país? Lembro da minha indignação na sala de cinema com o contexto e ouvi de alguém sentado ao fundo: -“Bem feito para ele”.

Fiquei me questionando: Bem feito para quem? Ele em questão é o protagonista, o menino de rua Sandro, uma das poucas vítimas que sobreviveu a estúpida Chacina da Candelária.Viu sua mãe ser assassinada na infância e passou por várias instituições ao longo da vida, foi preso, enfim, para muitos, o estereótipo de um marginal, desses que a sociedade em geral acredita que não mereceria ser “beneficiado” pelos direitos humanos.

Décio Luciano Squarcieri de Oliveira é Graduado em História – Licenciatura Plena pela Universidade Federal de Santa Maria. Especialista em História do Brasil/UFSM, Mestrando em Educação/UFSM, Professor Pesquisador I da Universidade Aberta do Brasil – UAB/UFSM, Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Imaginário Social – GEPEIS – UFSM. decioluciano@yahoo.com.br

E se torna um maldito porque mantêm a professora refém. Saí da sala de cinema e fiquei me perguntando o quanto nós o tornamos refém. Vítima de uma vida inteira. Quais as oportunidades que demos para ele. Algum de nós deixaria ele brincar com o nosso filho pequeno? Algum de nós se preocupou com as crianças que sobreviveram à chacina?

Lógico que o dia que ele tocar em algum de nós ficaremos enojados dele, afinal de contas ele era sujo, feio, negro, pobre. Imagina se quisesse namorar a filha de um de nós? E quando acontece algo assim a sociedade fica torcendo para que ele se dê mal, todos acharam super normal ele ter morrido no carro da polícia. Ninguém lembra que ele não matou ninguém dentro do ônibus. Ninguém se preocupou em saber o que realmente aconteceu dentro do carro, afinal foi só um marginal morto. Talvez se ele tivesse um sobrenome tradicional a história teria sido outra, pois filho de família abastada nesse país recebe um tratamento diferenciado.

Mas o Sandro morreu vítima da hostilidade de uma polícia despreparada. E talvez ninguém tenha chorado sua morte, ela apenas tenha virado estatística. Quando condenamos ele, nenhum de nós levou em conta sua história de vida, a impossibilidade de sucesso escolar, uma vida fadada a ser miserável.

Segundo PAIVA (1988, p. 144): “Para o herói trágico, por exemplo, o conflito é interior, enquanto, para o herói do melodrama, o conflito é exterior, ocorrendo entre os personagens e o mundo à sua volta.”

Dessa maneira, enquanto na tragédia o herói possui indagações existenciais (ethos e daimon), no melodrama o herói luta com o mundo ao seu redor.

         E ao longo de uma caminhada de vida, opinião essa nascida no contexto de quem já militou, já almoçou e jantou em barracos, já vivenciou o cotidiano do sertão, hoje o Sandro é um herói. Malvado para a mídia e para os milhões de brasileiros que torciam pela sua morte, guerreiro para nós que não condenamos alguém só porque utiliza drogas e que, tal como Vygotsky, acreditamos que o ser humano é, antes de mais nada, um ser social, atravessado pelo seu contexto.

         Um social que as pessoas têm dificuldades de entender que não é como o nosso. Ele não foi uma criança esperada e planejada como as nossas, não tinha um quartinho azul o esperando, nem tampouco fizeram festa quando nasceu. Era mais uma boca para comer em uma vida de absoluta miséria e sabe lá Deus com que idade foi apresentado a cola de sapateiro. Qualquer um de nós  utilizaríamos se passássemos fome e frio, se tivéssemos febre e ninguém para nos socorrer. Não, não tinha como ser diferente, e não citem por favor aquele um em milhões que uma ONG salvou e o tornou herói de uma geração. Talvez não hajam culpadas, ou a única culpada seja a história de séculos de exclusão.

         Preparem-se para depois de assistir ao filme, ter vontade de pegar um trem para as estrelas e jamais voltar. Vergonha de ser humano, de não fazer nada, de considerarmos normalidade fome, miséria e preconceito. De sempre condenarmos os grandes bandidos enquanto algozes da violência e de acharmos terríveis quando cometem crimes cruéis.

Crueldade pertencer a uma sociedade que se satisfaz ao ver o Roberto Carlos cantando no fim do ano, e que faz votos de felicidade para o ano vindouro, esquecendo é claro que o rei lá, todo de branco, jamais escreveu uma linha de protesto. Mas mora no imaginário do brasileiro, lota shows e é música predileta nas formaturas do ensino superior.

Em sua teoria da complexidade, Edgar Morin nos ensinou que nossa educação nos ensinou a separar, compartimentar, isolar os conhecimentos. Talvez daí consigamos entender nossa dificuldade nas relações, em entender que um acontecimento não está livre dos demais. E é justamente nessas uniões que devemos situar o nosso planeta, na luta por humanidade, pela ecologia, pela ética. Uma luta não se faz isolada das outras.

Outro dia, em uma escola ouvi de uma mãe: -Olha o que minha filha aprontou, queria fazer aulas de capoeira.

Essa mãe não era uma mãe qualquer, era uma professora com ensino superior, esposa de médico. Fiquei imaginando o que habitam ou que monstros habitam esse imaginário, pois qual o problema da capoeira? Uma dança-luta trazida pelos escravos? Isso a torna menos digna? Penso que sim, que as pessoas conservam o costume de separar seus lixos, mas têm nojo do catador que passa na rua. Odeiam olhar para os seus filhos desdentados, piolhentos e negros. Afinal, não são crianças como as nossas…

         Na hora agradeci a Deus por essa mãe não ser uma professora em exercício como eu, não estar falando essas bobagens em uma sala de aula repleta de crianças e disseminando mais um preconceito. Como pode? Alguém que em determinado momento da vida quis ser um educador proibir um filho de praticar determinado esporte? Essa é a classe dominante do país e o que fazem com nossos miseráveis e famintos?

Tenho pensado infinitamente na música do Nando Reis: “O que está acontecendo? O mundo está ao contrário e ninguém reparou…”

REFERÊNCIAS

MORIN, E. Terra Pátria. Porto Alegre: Sulinas, 1996.

PAIVA, S.J.H. de P. O cinema teatro de Fassbinder. São Paulo: Dissertação de Mestrado (Mestrado em Ciências da Comunicação) – Universidade de São Paulo,1998.

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