Fernanda Gabriela Soares dos Santos*[1]Décio Luciano Squarcieri de Oliveira**
publicado em 06/01/2009 como www.partes.com.br/educacao/ensaiosobreacegueira.asp
Eu vejo tudo em quadrado…”
Esquadros – Adriana Calcanhoto
Quantas vezes em nossas vidas nos damos conta que estamos vendo aquilo que os outros querem? Como na música, já olhamos com olhares direcionados para algum lugar e não olhamos tal como da primeira vez, como talvez só façam as crianças. Além de várias outras significações infantis que vamos perdendo com a vida adulta e tudo que esse conceito possa significar, ao longo de nossa história nos vamos formatando, através da escola, dos aparelhos repressores estatais e da televisão, entre outros.
O desafio do filme, Um ensaio sobre a cegueira, é exatamente esse. Tal como no brilhante livro, gradativamente as pessoas vão perdendo a visão. Sentido este que, enquanto o temos, não valorizamos. Quem de nós valoriza a visão, o sol, a luz as cores, sorrisos infantis, chuvinha?
Não há explicações, ninguém sabe racionalmente o que aconteceu. Acredita-se, em uma epidemia, os primeiros doentes ficam isolados. E tal como qualquer forma de organização humana, acontece de tudo: machismo, estupidez, arrogância, como também, afeto, solidariedade, carinho. O ser humano, tal como no conceito dos filósofos contratualistas, em seu estado natural.
Poucos sabem, mas uma única mulher continua enxergando o tempo todo? Por quê? Qual a explicação racional para isso? Por que logo ela? O que justificaria? Só
o médico, seu marido, o primeiro a atender um caso de cegueira repentina e o primeiro grupo que foi com ele para o isolamento sabiam que ela enxergava. Com o tempo a cegueira se espalhou até que todas as pessoas estavam cegas. O mundo estava transformado em um caos. As pessoas morrendo, os cachorros comendo as pessoas nas ruas, comidas espalhadas pelo chão, sujeira para todos os lados.
Quem detinha, portanto, o poder, uma vez que todos estavam na mesma situação? Quem eram os donos do conhecimento? Quais as regras do jogo moral? Foucault, em uma de suas discussões teóricas, mostra que o poder está em todos os lugares,, o conhecimento é uma forma de disciplinar a sociedade, controlar as pessoas, produzir e ordenar uma “verdade” que serve aos interesses dos dominadores.
Fica muito claro no filme quando, mesmo isolados e com poucos mantimentos, os cegos se dividem em grupos. Um dos grupos toma o poder e passa a estabelecer as regras e dar ordens. A comida, ainda que racionada passa a estar sob o comando deles, que as distribuem segundo seus próprios critérios: dinheiro, joias, mulheres.
Ainda citando Foucault, faz-se necessário lembrar que, para o teórico, o discurso do poder é o discurso da alienação, voltada para os interesses de uma elite dominante e exclusão dos indivíduos do processo político, enfim, de suas próprias vidas. Ao contrário da máxima “Em terra de cego quem tem um olho é rei”, dessa vez a única pessoa que enxergava estava muito mais preocupada em cuidar, ajudar do que em tomar o poder. Era quase uma missionária, pois passava o dia cuidando daqueles que não enxergavam absolutamente nada. Interpretação essa singularmente realizada por Julianne Moore.
Além de defender mais uma vez aqui a ideia de que uma boa adaptação de livro serve, a nós professores, como uma forma de estimular a leitura de nossos alunos, o filme é realmente um convite a várias interrogações. É sim inquietante, o que ficou evidente na cena em que o Canal Brasil está mostrando na qual, o próprio José Saramago, ao assistir pela primeira vez o filme, chora. E diz que está sentindo algo bom, tal como quando o terminou de escrever.
Vale também destacar o fato de o filme ser dirigido pelo sensível Fernando Meirelles, o que também deveria servir de estímulo pela filmografia do diretor e não é possível também deixar de mencionar o marcante papel do jovem Gael García Bernal, o qual jamais passa despercebido, é sim uma interpretação carregada sempre de emoção. E emociona a cada um de nós porque nos faz imaginar o que estaríamos fazendo no lugar daquelas pessoas, de que maneira agiríamos? Estaríamos de qual lado, a qual grupo pertenceríamos?
Embora não tão bem saudado pela crítica, o que para nós, amantes da sétima arte, sabemos que não significa absolutamente nada, o filme merece sim um ou mais olhares de ternura. Primeiro por ser uma adaptação de uma obra escrita em língua portuguesa por ninguém menos que José Saramago e isso, para nós que já tivemos oportunidade de lê-lo, significa um monte de coisas. Dentre elas popularizar uma obra que na maioria das vezes apenas uma elite tem acesso.
E também por nos inquietar, emocionar, repensar nos papéis que nos instituímos e nas suas reais possibilidades. Será que somos tão educados como parecemos quando nos deparamos com uma situação semelhante? Nessas horas deixamos de utilizar nossas máscaras de bem educados, bons homens e boas mulheres, eruditos e voltamos ao nosso estado de natureza? Como lutaríamos para garantir aos nossos filhos mantimentos e casas seguras, se todos estão brigando entre si?
Foucault também defende a tese de que o discurso do poder está inserido nos valores culturais que perpetuam uma estrutura alienante de exclusão social. Em alguma medida, a utopia serve enquanto fonte de inspiração, de uma prática libertária idealista de justiça social, contra o poder do hegemônico.
Em uma primeira vista, os primeiros cegos que ficavam isolados, são muito semelhantes às imagens que temos dos leprosos. O medo da contaminação, o descaso, os pacientes abandonados à própria sorte sem receber nenhum tipo de cuidado ou atendimento. Incomunicáveis, tratados como seres não humanos. Remete também ao que muitas pessoas ainda fazem com os portadores de HIV, por mais incrível que nos possa parecer, várias pessoas não apertam suas mãos ou os abraçam, com medo da contaminação.
Ficamos pensando que, se no mínimo mexer com as pessoas em relação aos seus próprios preconceitos, o filme já valeu a pena. E vale sim a ida ao cinema, a loucura, a metáfora com o Mito da Caverna, quem enxerga? Um outro grande momento é a volta, tal como os prisioneiros da caverna quando retornam, um processo semelhante acontece nas pessoas quando voltam a enxergar. E as perguntas se acumulam. Por quê? Qual a necessidade de ficar aquele período sem ver?
Talvez a cegueira que Saramago nos proponha seja a de cada um de nós, que já não olhamos para os lados, que já nos esquecemos da Chacina da Candelária, do incêndio do Carandiru, que não nos importamos com os mendigos dos parques. Que achamos normal uns comerem todos os dias e outros comerem, às vezes, os restos. Somos cegos quando já não enxergamos além do que nos deram para ver, ou como diria o poeta sem ver com “olhos livres.”
A cegueira é aquela cotidiana, ratificada pelo nosso trabalho que não proporciona as devidas horas de reflexão. Somos tão cobrados ao ponto de produzir a alienação que Foucault nos fala? E, se somos, quais os nossos gritos? Qual a nossa saída para a cegueira imposta pela sociedade do espetáculo? Esperamos, nesse lindo dia de Natal que lembremos de todos aqueles que nunca saberão o que é o gosto de ter comida na mesa todos os dias. Para nós, enxergar é isso e romper, como diria o Chico Buarque com “Todo esse amor reprimido, esse grito contido, esse samba no escuro…”
Referências
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
* Professora de Filosofia da Rede Municipal de Formigueiro, RS e mestranda em Educação pelo PPGE/UFSM- fernandagssantos@yahoo.com.br
** Professor de História, Especialista em História do Brasil, Professor Substituto do Departamento de Metodologia do Ensino – MEN –CE-UFSM- decioluciano@yahoo.com.br