Ana Paula Menezes de Santana *
publicado em 01/10/2008 como www.partes.com.br/educacao/varianteslinguisticas.asp
RESUMO:
Este artigo aborda a influência dos elementos da língua falada coloquial. Com base no fenômeno das variações lingüísticas. Partindo do pressuposto de que a relação entre fala e escrita baseia-se num problema social; busca-se, por meio do levantamento das principais marcas da oralidade, encontradas na sociedade, demonstrar as semelhanças entre ambas às modalidades e, assim, provar que não se pode falar de superioridade de uma com relação à outra. Sendo assim, tentar mostrar o quanto seria inconveniente para as pessoas “alimentar” o chamado ‘preconceito linguístico’. No que se refere ao ensino da norma padrão, pretende-se, levando a questão oralidade para as salas de aula, ampliar a visão dos alunos sobre a língua ao discutir as noções de heterogeneidade e preconceito linguístico. Discutiremos aqui as chamadas “transgressões” da norma culta, correto e incorreto e, o que se pode considerar regra-padrão e não-padrão.
Palavras-chave: variação linguística, norma padrão, preconceito linguístico, exclusão social.
INTRODUÇÃO
O modo das pessoas falarem pode ser explicado por algumas ciências; como, a linguística, a história, a sociologia e até mesmo a psicologia. Embora, a nossa tradição educacional negue a existência de uma pluralidade dentro do universo da língua portuguesa; e não aceite que a norma padrão seja uma das variedades possíveis no uso do português, a “língua portuguesa” está em constante modificação e recebe, notadamente, a influência de palavras pertencentes a outros idiomas, principalmente dos imigrantes que chegam a todo o momento no país; entre eles: portugueses, americanos, japoneses, alemães e italianos.
Em diferentes regiões do país, o português é falado com sotaques e características muito próprias, mas a norma padrão, com uma ortografia oficial, definida pela Academia Brasileira de Letras é uma só, para ser seguida em todo o país. Essa imposição marca a diferença entre a língua falada, que nem sempre segue o padrão imposto por lei e, o português-padrão, chamado também de norma ‘culta’. Enquanto o português-padrão é aprendido nas escolas, e é aquele usado na linguagem escrita, o português-não-padrão é passado de geração para outra, oralmente.
O Brasil encontra-se entre as maiores economias do mundo e, mesmo assim, a desigualdade social existente ainda é preocupante; diante disso, percebemos que a posição econômica dos indivíduos e classes sociais condiciona o uso da linguagem. A estrutura econômica incide sobre a comunicação. O pertencimento a determinado grupo e classe social tem tudo a ver com as diferentes linguagens utilizadas no cotidiano, nos diversos espaços formais e informais da sociedade.
Neste contexto, atento-me as palavras de BOURDIEU:
A língua é destacada no seu valor simbólico como uma forma de capital cultural que determina o prestígio social do falante e, consequentemente, promove ou não a sua participação nos diversos campos sociais. A escola, por excelência, exclui aqueles que não compartilham da língua, ou da norma linguística, que governa as suas práticas discursivas (Bourdieu 1994).
Diante disso, este artigo irá questionar: Erros de português não existem? O que há são variações lingüísticas, formas de falar que vão se constituindo de acordo com o uso das palavras, ao longo do tempo? As regras da gramática tradicional são elementos de dominação e exclusão social? O correto seria escrever como se fala? O preconceito linguístico revela um outro preconceito: O social? Diante de tais questionamentos, precisamos compreender e ampliar o debate, acerca do estudo da língua padrão, bem como as suas variantes linguísticas sociais; e, reconhecer as normas lingüísticas diferentes como forma de comunicação, contribuindo assim para o não-preconceito lingüístico.
Procura-se,ao longo do texto, ressaltar a diversidade do português falado no Brasil; apresentar a língua materna de uma forma não preconceituosa, formando cidadãos com consciência social que valorizem sua cultura; respeitar o conhecimento intuitivo do indivíduo, valorizando o que ele já sabe do mundo, da vida; elevar e não rebaixar autoestima do ser humano; reconhecer que o aluno tem um conhecimento prévio da língua, fruto da sua vivência, cabendo à escola aproveitar esse saber, para que ele multiplique os seus conhecimentos; apresentar as possíveis variantes linguísticas sociais, valorizando-as para que possam servir de aprendizado na desconstrução do preconceito linguístico.
- A VARIAÇÃO LINGÜÍSTICA
A variação linguística é um fenômeno estudado pela Linguística, mais especificamente pela Sociolingüística que atua no limiar entre língua e sociedade, buscando a heterogeneidade encontrada nos diversos falares. Atualmente, esse tema é abordado por vários pesquisadores os quais se dedicam a estudar as variantes encontradas em nossa língua materna que, somam uma quantia incalculável, desmistificando a unidade linguística no português falado pelo povo brasileiro.
Perceber o português falado em toda a extensão do território brasileiro como único é o mesmo que fechar os olhos para todas as culturas existentes em nosso país. É olvidar, dentre outros fatores, de todos os processos imigratórios e migratórios que constituíram e continuam constituindo a nossa história. É não perceber que politicamente pertencemos a diferentes estruturas sociais, que nos inserem em distintos contextos acabando por construir formas desiguais de linguagem dentro de uma mesma língua.
“É através da linguagem que uma sociedade se comunica e retrata o conhecimento e entendimento de si própria e do mundo que a cerca. É na linguagem que se refletem a identificação e a diferenciação de cada comunidade e também a inserção do indivíduo em diferentes agrupamentos, estratos sociais, faixas etárias, gêneros, graus de escolaridade”. (LEITE, 2002)
Ao se fazer uma análise evolutiva da língua a partir das potencialidades naturais das transformações linguísticas é possível distinguir quatro grupos distintos de variação: variação histórica, variação estilística (social), variação geográfica e variação regional. Todas as variações servem igualmente para a comunicação entre falantes de comunidades de fala. Nesse sentido, a análise linguística desempenha papel fundamental no processo de interação fala/sociedade. A variação linguística, porém, não torna a língua melhor ou pior nem mais bonita. Simplesmente aproxima o indivíduo de uma melhor compreensão do mundo e sua relação no meio em que vive.
1.1 As variedades linguísticas contextualizadas na estrutura social
A língua tem um caráter social e faculta aos membros de uma comunidade a possibilidade de comunicação. Hoje ela exerce um papel cada vez mais importante nas relações humanas, razão pela qual já envolve modernos processos de estudo.
É através da linguagem que o indivíduo define sua identidade cultural e o seu status social, pois o indivíduo e a sociedade se determinam mutuamente na língua e pela língua. Os falantes de um grupo social falam habitualmente de um mesmo modo e mantêm esses comportamentos através das gerações, como se houvesse uma lei ou norma que lhes indicasse a melhor maneira de comunicar-se dentro de seu grupo geográfico e social.
A despeito de diferenças de enfoque, todo o linguista indiscriminadamente concorda com o princípio de que nenhuma língua natural humana é um sistema em si mesmo homogêneo e invariável. Em todos os níveis da análise, depara-se com o fenômeno da variação. Cada falante atua de acordo com certos comportamentos linguísticos constantes em sua comunidade e eleitos como ideais para comunicar-se. A articulação, o modo de organização textual, a consideração do espaço do sujeito, o momento da enunciação e a história do interlocutor, são fatores pragmáticos que exercem uma influência na variação da linguagem pelos falantes.
- A NORMA CULTA E A LÍNGUA PADRÃO
A norma culta é a que assegura a unidade da língua nacional. E justamente em nome dessa unidade, tão importante do ponto de vista político-cultural, que é ensinada nas escolas e difundida nas gramáticas.
Sendo mais espontânea e criativa, a língua popular se afigura mais expressiva e dinâmica. Temos, assim, à guisa de exemplificação:
Estou preocupado. (norma culta)
Tô preocupado. (língua popular)
Tô grilado. (gíria, limite da língua popular)
Para os linguistas, a língua-padrão se estriba nas normas e convenções agregadas num corpo chamado de gramática tradicional e que tem a veleidade de servir de modelo de correção para toda e qualquer forma de expressão linguística. A sociedade brasileira tem perpetuado a noção de que a língua oral deve ser um reflexo da norma culta, que se manifesta na língua escrita. Esse comportamento possui raízes históricas, num contraste constante entre dominadores e dominados. Trata-se do permanente embate entre a “gente boa” (Lucchesi, 2002:78) da colônia e os desprestigiados, na época representados, respectivamente, pela elite dos pequenos centros urbanos e pelos negros, índios e mestiços.
Neste contexto, ao se falar da relação de dominadores e dominados, reporto-me a Paulo Freire, na sua Obra ‘Pedagogia do Oprimido’, que diz:
A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar. (FREIRE, 1988, p. 78)
Ainda na questão da variação, os primeiros gramáticos, comparando a língua escrita dos grandes escritores do passado e a língua falada espontânea, concluíram que a língua falada era caótica, sem regras, ilógica, e que somente a língua escrita literária merecia ser estudada, analisada e servir de base para o modelo do “bom uso” do idioma. Essa separação rígida entre fala e escrita é rejeitada pelos estudos linguísticos contemporâneos, mas continua viva na mentalidade da grande maioria das pessoas.
O Ensino tradicional do ‘português’ na sala de aula
No modelo tradicional de escola, caracteriza-se, principalmente, pelo seu caráter reprodutor. Considera-se bom aprendiz, àquele aluno que consegue devolver ao professor a palavra do livro didático. A avaliação da compreensão de leitura tem-se limitado à capacidade de captar informações explícitas na superfície do texto. Isso se deve, certamente, às concepções de língua, texto e leitura subjacentes à prática pedagógica.
Assim, concebe-se a língua como um código transparente e exterior ao indivíduo, o texto como uma mera soma de palavras e frases, e a leitura como a busca/confirmação de um sentido preestabelecido. Diante disso, não poderemos perder de vista, o significado que temos, atualmente, social e político da apropriação da leitura e da escrita, compreendendo este processo, na perspectiva de Letramento, apresentado por Madga Soares:
O Estado ou condição de quem interage com diferentes portadores de leitura e escrita, com diferentes gêneros e tipos de leitura e escrita, com as diferentes funções que a leitura e escrita desempenham em nossa vida. Enfim, Letramento é o estado ou condição de quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e escrita[1]
E, no que se refere à alfabetização, momento inicial do processo de aquisição da leitura e da escrita, cabe enfatizar, segundo Klein (2000), que esta etapa se caracteriza pelo fato de desenvolver juntamente com os conteúdos relativos à textualidade também os conteúdos pertinentes à codificação / decodificação.
A sala de aula é considerada um verdadeiro laboratório, onde muitas coisas podem acontecer. Mas não basta viver toda essa experiência; é preciso refletir sempre sobre ela. Entendo que um dos requisitos para uma ação pedagógica de qualidade é justamente este: o do professor reflexivo – aquele que reflete ao planejar seu trabalho, ao executar o que planejou e, de modo especial, ao analisar sua prática, com vistas a reformulá-la, melhorá-la sempre que for preciso.
Talvez não saibamos olhar o ensino da língua como um processo em que estão inseridos falantes a se constituir como sujeitos de sua/nossa história. Talvez essa dinamicidade não tenha ainda sido percebida e analisada por nós. Talvez ainda não tenhamos ousado “ler” o ensino como algo dinâmico e passível de ser construído também pelo aluno. O que não nos faltam são dúvidas. Afinal, “parece ainda haver muito a se aprender para que nossos olhos possam ver o que a realidade nos põe à frente e nos desafia a compreender” (GARCIA, 1998, p. 24).
Acredito que, às vezes, nos falta também compreender o contexto em que estamos inseridos, ou seja, a sala de aula. Não conseguimos ainda transpor o nível adequado de leitura desse espaço para efetuar a transformação necessária. O espaço sala de aula pode ser prazeroso e instigante, uma vez que as possibilidades de relacionamento e histórias presentes nele são infinitas e inimagináveis. Entretanto, quando vazio, esse espaço nada representa. Nele devem estar presentes os atores – professores e alunos – porque sem eles, esse local torna-se um simples cenário sem ação, sem vida, sem razão de existir, apenas um palco montado, sem espetáculo algum.
- ERRO DE PORTUGUÊS NÃO EXISTE
Erros de português não existem. O que há são variações linguísticas, formas de falar que vão se constituindo de acordo com o uso das palavras, ao longo do tempo. Do mesmo modo, não podemos falar em erro comum ao empregarmos determinadas construções gramaticais que parecem soar em desacordo com as normas oficiais do idioma.
“O brasileiro sabe o seu português, o português do Brasil, enquanto os portugueses sabem o português deles. Nenhum dos dois é mais certo ou mais errado, mais feio ou mais bonito: são apenas diferentes um do outro.” Nesse trecho, de seu livro ‘Preconceito linguístico: o que é, como se faz’, Marcos Bagno ataca a crença segundo a qual “brasileiro não sabe português e só em Portugal se fala bem português”. Esse “mito” seria um dos pilares do que ele chama de “mitologia do preconceito linguístico” – um conjunto de crenças equivocadas, responsável pela má qualidade e ineficiência do ensino do português nas escolas e pela dificuldade que muitos brasileiros têm no trato com a língua materna.
Para Bagno, o “erro de português” que amedronta, intimida e humilha tanta gente, simplesmente não existe. Haveria, na verdade, diferentes gramáticas para diferentes variedades do português. Cada uma delas perfeitamente válida em seu contexto. Todas merecedoras de respeito.
O surpreendente, diz ele, é que, ao mesmo tempo em que o MEC estaria ouvindo os linguistas e acompanhando as pesquisas acadêmicas – num processo de modernização evidenciado nos novos Parâmetros Curriculares Nacionais –, os meios de comunicação estariam desempenhando um papel mais conservador. Quase todos os programas de rádio e TV, colunas de jornais e revistas, manuais de redação, CD-ROMs e até sites na Internet dedicados a questões da língua estariam tentando preservar normas ultrapassadas por meio do que ele denomina “comandos paragramaticais”.
“As pessoas que falam e escrevem sobre a língua na mídia em geral são jornalistas, advogados ou professores de português que não estão ligados à pesquisa, não participam do debate acadêmico, não estão em dia com as novas tendências da Linguística – são os que eu chamo de gramatiqueiros”, critica Bagno. Para ele, esses “pseudo-especialistas”, ao tentar fazer as pessoas decorarem regras que ninguém mais usa, estariam vendendo “fósseis gramaticais”, fazendo da suposta dificuldade da língua portuguesa um produto de boa saída comercial.
As críticas que faz à gramática tradicional não devem ser confundidas com um “vale tudo” linguístico, explica Bagno. “No campo da língua, na verdade, tudo vale alguma coisa”, assegura o escritor. Mas esse valor dependeria do contexto, de “quem diz o quê, a quem, como, quando, onde, por que e visando que efeito”. Quanto ao ensino nas escolas, diz ele, a norma culta deve mesmo ser o principal objeto de estudo. O problema estaria na definição da norma culta a ser ensinada.
3.1 Preconceito linguístico
Desde o início dos estudos linguísticos, percebe-se que a linguagem pode ser usada como meio de discriminação social, de exclusão social. O interessante seria descobrir quais são esses mecanismos que levam as pessoas a discriminarem outras por sua maneira de falar. Então, a ideia foi desde sempre tentar associar as questões linguísticas com as questões sociais e descobrir quais são essas relações, fazer as pessoas se conscientizarem disso, de que existe esse preconceito e, encontrar maneira de combatê-lo.
Acredito que o preconceito linguístico não existe. O que existe de fato é o preconceito social. Então, a língua, a maneira de falar da pessoa é apenas uma desculpa que as outras pessoas usam para discriminar, para excluir. Então, o verdadeiro preconceito é social. E ,quando, refiro-me a preconceito social, lembro-me de Paulo Freire em suas obras “Pedagogia do Oprimido” e “Pedagogia da Esperança” que propõe uma pedagogia capaz de libertar o oprimido e o opressor, transformando as relações de poder; tão presentes nas experiências educacionais.
A nossa preocupação, neste trabalho, é apenas apresentar alguns aspectos do que nos parece constituir o que vimos chamando de Pedagogia do Oprimido: aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos,na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação, em que esta pedagogia se fará e refará.[2]
Neste contexto, o português padrão seria aquele modelo de língua idealizado que as pessoas aprendem na escola, que vem codificado nas gramáticas. E, como ninguém fala exatamente esse padrão, todas as formas que realmente existem na sociedade são consideradas não padrão. Então, é um confronto que a gente faz entre o modelo de língua, uma língua idealizada, e a realidade dos brasileiros.
Do ponto de vista linguístico, todas as maneiras de falar se equivalem, todas as formas de falar atendem as necessidades dos falantes. A superioridade é apenas uma construção cultural e social. As pessoas acham que uma determinada maneira de falar, por ser falada ou por ser empregada pelas classes privilegiadas da sociedade, é superior. Então, essa superioridade só existe do ponto de vista da hierarquia social. O modo de falar das pessoas que estão, digamos assim, no poder é que acaba se constituindo na forma mais prestigiada da sociedade. Mas do ponto de vista linguístico todas as maneiras de falar se equivalem.
Cada indivíduo na hora de usar a língua faz diferenças de uso, de acordo com o contexto, com a situação, com a familiaridade, com a pessoa com quem está interagindo. “A palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território comum do locutor e do interlocutor” (BAKHTIN, 2004, p.113).
Sabe-se que a língua atua como um forte instrumento de poder social. Tem mais influência na sociedade aquele que mais se aproxima da língua culta ou “cultuada”, tornando-se um indivíduo “letrado”. Contudo, umas das armas mais eficazes para o combate ao preconceito linguístico seria esclarecimento de que a gramática não é a língua, conforme a seguinte citação:
“O preconceito lingüístico está ligado em boa medida à confusão que foi criada no curso da história entre língua e gramática normativa. Nossa tarefa mais urgente é desfazer essa confusão.” (BAGNO, 1999 )
3.2 A Produção textual neste contexto
Com relação à produção textual, a situação é ainda mais preocupante. Segundo os professores, há várias problemáticas com relação a essa atividade:
- i) a produção é feita para o professor atribuir nota, não tem um fim social;
- ii) o aluno tem pouca oportunidade de reflexão e escolha;
iii) no texto produzido pelo aluno destacam-se os erros e desconsideram-se os acertos;
- iv) a produção é realizada apenas como cumprimento do programa.
Segundo Suassuna (1999, p.193), “as atividades de escrita desenvolvidas em sala de aula são fortemente marcadas por uma metodologia tradicional, baseada na dicotomia certo versus errado.” Dessa forma, a produção textual é vista como uma oportunidade de o aluno demonstrar sua capacidade em utilizar-se da língua padrão, desconsiderando-se o objetivo primeiro da escrita: o autor revelar-se ao outro, tornando-se sujeito-enunciador.
Na escola, a cena de o aluno escrever porque quer, sem que lhe seja solicitado, não é comum. Nós mesmos, professores, criticamos nossos alunos, porém estamos presos a padrões que nos impedem de escrever. Se dermos valor apenas ao conteúdo de uma disciplina e não demonstrarmos sua utilização, sua importância estaremos resumindo o ato pedagógico a um simples ato mecânico.
Uma das teses centrais da Sociologia da Educação de Bourdieu é a de que os alunos não são indivíduos abstratos que competem em condições relativamente igualitárias na escola, mas atores socialmente constituídos que trazem, em larga medida incorporada, uma bagagem social e cultural diferenciada e mais ou menos rentável no mercado escolar. (Nogueira & Nogueira, p. 18).
Pelo fato da escola receber alunos das mais variadas camadas sociais e, portanto, das mais diversas variantes lingüísticas e culturais, à escola cabe encontrar o ponto de equilíbrio ou a maneira apropriada para se trabalhar essa diversidade de forma que todos tenham crescimento intelectual e desenvolvam sua competência discursiva.
- CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Brasil, as variedades que existem no país se explicam pela história de cada região, pela história das pessoas que falam essas variedades. Há vários fatores históricos, sociais e culturais que explicam essa diversidade.
Os professores precisam se conscientizar da existência do preconceito linguístico. Isso, eles vão conseguir fazer se dedicando a um estudo mais sério, mais detalhado da questão da variação linguística. Então, é necessário que, antes de mais nada, eles tenham uma boa formação na parte que a gente chama de sociolinguística. A partir desse conhecimento, desses estudos é que eles vão poder traçar algumas estratégias para trabalhar com isso em sala de aula.
O português padrão está muito distante da realidade linguística dos brasileiros. Mas também não podemos misturar as coisas. Existem questões aí que são relativas ao aprendizado da ortografia, ao aprendizado da língua escrita. Nós temos que ter tais discernimentos, aquilo que vem da variação linguística e da mudança linguística também, e aquilo que diz respeito especificamente às regras de ortografia. Acho que a escola não tem se concentrado, do jeito que deveria, na prática da escrita, que é uma das principais funções dela, a qual é levar as pessoas a escrever bem e também a saber ler. Mas tradicionalmente nosso ensino fica muito preso a regras, a ‘decoreba’ de nomes, a separação silábica, a análise sintática. Então, a pessoa sai da escola sem saber o que é uma oração subordinada substantiva objetiva direta, apesar de passar 11 anos estudando isso, e também sai sem conseguir produzir um texto minimamente coeso e coerente. Então, tem a ver realmente com as práticas de ensino de língua, as quais têm sido utilizadas na nossa tradição.
A missão da escola é levar os alunos a se apoderar das formas prestigiadas de falar e de escrever. Agora, isso tem que ser feito sem discriminar a fala original, sem fazer qualquer tipo de atitude preconceituosa com a variedade linguística que o aluno já traz para a escola. Trata-se de acrescentar a bagagem cultural dele, aumentar o seu repertório linguístico, e não de substituir uma forma considerada errada por uma forma supostamente certa. Todas as formas de falar são igualmente válidas, e a função da escola é apresentar para o aluno aquilo que ele não sabe, ou seja, as formas de prestígio, e essas se transmitem basicamente pela prática da leitura e da escrita.
Para elucidar essa importante questão, é mister a reflexão sociointeracionista de Vigotski a cerca da relação entre aprendizado sistematizado e desenvolvimento, tomando como paradigma a aquisição da linguagem:
Propomos que um aspecto essencial do aprendizado é o fato de ele criar a zona de desenvolvimento proximal; ou seja, o aprendizado desperta vários processos internos de desenvolvimento, que são capazes de operar somente quando a criança interage com pessoas em seu ambiente e quando em cooperação com seus companheiros. Uma vez internalizados, esses processos tornam-se parte das aquisições do desenvolvimento independente da criança.
Desse ponto de vista, o aprendizado não é desenvolvimento; entretanto, o aprendizado adequadamente organizado resulta em desenvolvimento mental e põe em movimento vários processos de desenvolvimento que, de outra forma, seria impossível de acontecer.[3]
Diante disso, este artigo teve a pretensão de mostrar que a língua não pode ser estudada longe da política, pois o contexto social interfere ativamente na linguagem de cada cidadão. E que não é uma tarefa fácil ensinar língua padrão aos ‘desfavorecidos socialmente’ sem reconhecer o conhecimento prévio de cada um.
E conclamar a sociedade uma mudança de atitudes e uma postura desgarrada de preconceito a todos que vivem rodeados de injustiças, contudo principalmente aos educadores, para que apresentem a língua materna de uma forma não preconceituosa, formando cidadãos com a consciência social e que valorize sua cultura.
REFERÊNCIAS
BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico – o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
_____________. “Carta ao Deputado Aldo Rebelo” (01/10/1999)
_____________. Dramática da Língua Portuguesa: Tradição gramatical, mídia e exclusão social.. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
_____________. A Língua de Eulália. São Paulo: Contexto, 2001;
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 11ª. edição. São Paulo: Hucitec, 2004.
BOURDIEU, P. Language and Symbolic Power. Cambridge, MA.: Harvard University Press, 1994.
BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. Campinas: editora da UNICAMP, 1996.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido, 18ª. edição. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
KLEIMAN, A. Modelos de Letramento e as práticas de alfabetização na escola. In: Kleiman, A. (org.) Os significados do letramento: uma nova perspectiva sobre a prática social da escrita, Campinas, SP: Mercado de Letras
MOTA, K. A linguagem da vida, a linguagem da escola: inclusão ou exclusão? Uma breve reflexão lingüística para não lingüistas. Educação e Contemporaneidade – Revista da FAEEBA, Salvador: UNEB, vol. 11/n. 17 , jan/jun 2002.
POSSENTI, S. (1996). Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: ABL.
SOARES, Magda. Letramento: Um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2003
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. 5ª. edição. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
Aluna Especial do Mestrado em Educação e Contemporaneidade da Universidade do Estado da Bahia (UNEB); Especialista em Metodologia e Didática do Ensino Superior pela Faculdade São Bento e Graduada em Letras Vernáculas pela Universidade Católica do Salvador (UCSal).
Vice – Coordenadora Pedagógica dos Programas de Pós-Graduação da FINOM/PRÓ-SABER.
Email: redapaula@gmail.com
[1] SOARES, Magda. Letramento: Um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. p.44.
[2] FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1987. p. 17.
[3] VIGOTSKI, L.S. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 117-118.