Madalena Sofia Galvão Viana
publicado em 08/03/2008 como www.partes.com.br/cronicas/madalenasofia/aquelemoco.asp
Era um moço que acordava cedo mesmo sendo uma manhã fria de sábado. O mês era agosto, os padrinhos tinham sido convidados um dia antes. O enxoval era modesto, minha avó pegou tudo que tinha de dois e mandou pra ele. Ele que já morava sozinho com meu tio há um tempo, levou do seu antigo quarto de solteiro o guarda-roupa e a televisão grandona em preto e branco que mais tarde viria a transmitir o Chaves e o Chapolim para mim e minha irmã assistir.
O dinheiro era meio curto, ora ganhava algum fazendo as contas alheias num escritório contábil que era sócio com meu tio, ora resolvendo causas conflituosas no fórum da nossa cidade como recém formado em Direito. As alianças não chegou a comprar, na verdade, só comprou a da minha mãe, o dinheiro era pouco para as duas. Por sinal dos céus a aliança que meu avô usou veio colada num dos copos que minha avó mandara para os noivos. Assim, resolveu-se o problema.
Não se celebrava missa às seis da manhã num dia de sábado, no entanto, o padre da freguesia era amigo e bastante querido, e abriu a igreja só para o casamento. Ninguém sabia do casório, só os de casa literalmente. Na casa de minha mãe meus avós e meus tios sabiam; na casa de meu pai, minha avó e minhas tias. Nem sobrinhos, nem primos perto nem distantes, nem aquele parente cujo parentesco passa “lá por trás da serra”.
Seis horas da manhã lá estavam diante de Deus. Minha mãe conta que quando chegou na Igreja meu pai já estava esperando, o que lhe deu um certo alívio, acho que em toda noiva. Mas lá estavam, tinha no máximo umas seis a sete pessoas. Era o dia oito de agosto. A cerimônia foi rápida. Não teve fotos, fotógrafos também não foram convidados, tudo na surdina devido a ausência de festa, pelo fato de que não podiam gastar e para fazer festa tinham que chamar todos aqueles que mereciam um convite, assim, celebraram a união dos dois sem convidar ninguém, não causaria maiores transtornos.
Pois bem, não existe nenhum registro daquele dia, somente os relatos que tanto escutei embalado com risadas e comentários que emanavam dos dois. Depois do casamento minha mãe foi para casa, tomar café da manhã e ir para o Correio. Ele saiu da igreja e por ser muito cedo foi tomar café num bar central da cidade onde era muito frequentado.
Depois de longos sete anos de namoro se casaram. Após três anos de casamento foi que eu nasci, depois minha irmã e nossa família se completou. Era um moço maduro que se acostumou com aquelas seis horas da manhã e que sempre acordava cedo. Que sempre, na hora da mesa, tinha uma história bem interessante, bem humorada para contar. Só hoje eu tenho a certeza de que meu mundo se resumia naquelas quatro cadeiras em redor da mesa. Que meu mundo só veio a existir a partir daquele sim diante de Deus, sem festa glamourosa nem presentes, nem fotógrafos nem convidados. Mas tinha o amor dos dois e a fé na eternidade do ato, na importância das bênçãos dos céus.
Aprendi isso desde cedinho, nas missas que íamos aos sábados, nas procissões que acompanhávamos pela metade (o percurso era longo), nas festas dos santos que tínhamos devoção. Ele era um moço religioso, embora sempre racional, acreditava na emoção que não se explica. “É um mistério. Minha filha, mistério não se entende, acredita, apenas.” Só assim sosseguei nas intermináveis indagações sobre “quem criou o céu?”
Cada festa que ensejava um feriado ele sabia o porquê da Igreja marcar aquele dia. O dia da padroeira da cidade, o dia de Corpus Cristis, o Pentecostes, as festas juninas. Principalmente nessas últimas. Eu sabia desde cedo que São João não era aquele que escreveu o evangelho, mas era o primo de Jesus. O porquê das fogueiras, dos fogos. Os fogos que sempre tive medo de soltar. Dava-me por feliz em me esbaldar nas chuvinhas, tracks e estrelinhas. Nunca soltei uma bomba, nunca. Ele soltava vulcão, e nós, ficávamos olhando para aquela chuva de fogo de várias cores.
De fato o São João tinha todo um clima, vai ver pelo friozinho que o próprio mês carrega consigo, aquela batidinha do bumbo, triângulo e sanfona que fazia a trilha sonora no forró de Luiz Gonzaga. As noites eram mais bonitas e eu esperava por elas o ano inteiro.
“Olha pro céu meu amor, vê como ele está lindo. Olha pra aquele balão multicor
que pelo céu vai subindo.
Foi numa noite, igual a essa, que tu me desse o coração
O céu estava azul em festa
Porque era noite de São João.”
Falava assim uma das músicas. Foi esse moço que me ensinou a cantá-la, que me ensinou diferenciar direita e esquerda, que me disse que a gente só devia “chorar de alegria ou quando tivesse feliz da vida”. Esqueci de perguntar como eu devia lidar com a saudade quando ele partisse. O que eu devia dizer a mim mesma quando o procurasse para abraçar e ele não tivesse mais ali. Ainda bem que perguntei, semanas antes, se ele achava se seria mais feliz se tivesse sido engenheiro em vez de advogado. Sempre quis perguntar isso, porque ele falava muito que queria ter sido engenheiro. Vejam só, levei vinte e um anos para perguntar. Ele me respondeu que era feliz como advogado, mas seria mais feliz com os cálculos da engenharia.
Como fala a música que mencionei, foi numa noite igual a essas, de comecinho de inverno, de frio de manhã e de noite que ele se foi. No mês de São João, no dia oito de junho. Dois meses antes de fazer vinte e cinco anos de casamento os sinos da Igreja tocaram. Dessa vez não foi na surdina, a casa estava cheia, estavam os meus tios, os sobrinhos, os parentes de perto e de longe, os amigos, só não mais estavam os meus avós.
Aquele moço que acordou cedo naquela manhã de agosto para, diante da Santa Cruz, unir-se a minha mãe, se foi no mesmo dia oito do mês que ele gostava. Eu não estava na hora, meu coração não estava batendo junto do dele quando o Senhor o chamou de volta. Estavam só os dois. Adormeceu nos braços daquela que também acordou cedo naquela longínqua manhã de sábado. Nos braços de minha mãe.