Maria do Socorro Nascimento de Mello
publicado em 23/01/2008
INTRODUÇÃO A morte é mais do que um fim inevitável, porque integra uma parte da existência do homem. Pode apresentar-se em todas as discussões no âmbito filosófico, religioso, antropológico, sociológico, médico e educacional, obtendo interpretações distintas. Porém, de modo geral, a morte, admitida como única certeza que temos na vida, é sentida como um acontecimento triste, que representa a finalização de um ciclo, e continua sendo tabu em nossa sociedade. Certas normas sociais exigem que ela seja assunto ausente das conversas educadas (MELO, 2000). Isto é o que parece estar acontecendo no cotidiano escolar. Não só nas escolas de Educação Infantil e Básica, mas também naquelas de Educação Superior. Falar a palavra morte, causa certo pavor, até mesmo em indivíduos com formação em nível de pós-graduação, inclusive professores atuantes em cursos de graduação, mestrado e doutorado, que afirmam não se encontrar preparados para discutirem tal temática. Então, se o professor de uma instituição educacional, formadora de profissionais para atuarem nas mais diversas áreas do conhecimento, não se acha preparado para tal discussão, questionamos: como seria a formação de pessoas para lidar com a morte ao longo da sua vida pessoal, acadêmica e profissional? A presença dessa lacuna parece revelar o pouco interesse em se estudar o tema nas variadas áreas do conhecimento, ou em aborda-lo no meio escolar, em comparação ao interesse demonstrado por outros fenômenos sociais e culturais. Em consequência disso, estudos sobre morte como objeto de conhecimento escolar se mostram recentes nas sociedades ocidentais. Kovács (2003b, p.44), uma importante referência para esses estudos, assume:
Em pesquisa bibliográfica praticamente não encontrei referências sobre a questão da morte associada ao contexto educacional e à formação de educadores; por outro lado, em minha experiência profissional, encontro sempre à denúncia dessa lacuna por parte de professores – ausências mais intrigantes por sabermos todos o quanto a morte está presente no universo escolar, pelas perdas que acontecem na vida de crianças e adolescentes e pela via da morte escancarada, com violência, repentina, brusca e para qual é muito difícil se encontrar proteção.
Um fato concernente que ilustra o pensamento da autora acima é o artigo “Como lidar com a morte”, publicado, na coluna SOS sala de aula, da Revista Nova Escola, número 163, no bimestre junho/julho de 2003. Nesse texto, uma professora solicitava ajuda, pois, diante da realidade da morte, não sabia como se portar em sua classe, tanto com um aluno que acabava de perder o pai como com o restante da turma (SILVA, 2003). É certo que tal atitude da professora pode refletir a falta ou parcimônia de orientação presente na escola, confirmando “a denúncia da lacuna” sinalizada por Kovács (2003b). Porém, se há um documento oficial – os Parâmetros Curriculares Nacionais concernentes a níveis diferenciados de ensino – que dá suporte e norteia as instituições educacionais brasileiras nas variadas instâncias da atividade pedagógica, por que ainda existe esse problema? Nesse sentido, foram propostas como questões para a minha investigação: os Parâmetros Curriculares Nacionais abordam essa temática? Como? Que subsídios teórico-metodológicos os docentes podem encontrar nesse documento oficial cujo objetivo é auxiliar as práticas curriculares e didático-pedagógicas exercidas nos estabelecimentos educacionais do país? Como professoras licenciadas em Pedagogia e habilitadas para atuarem na Educação Infantil e nas séries iniciais da Educação Básica, trabalham com o conceito de morte na sala de aula? Como se comportam quando a morte, direta ou indiretamente, se faz presente no seu cotidiano profissional? Como enfrentam a perda por morte de um aluno durante o ano letivo? E, se nunca vivenciaram essa experiência, como pensam que agiriam frente ao falecimento de um aluno? Como lidam com o educando que, há pouco, sofreu a perda de um ente querido? Por conseguinte, registro o meu interesse em entender como a morte está/é inserida nas práticas curriculares e didático-pedagógicas; apontar a abordagem dos Parâmetros Curriculares Nacionais em torno do tema da morte; compreender as percepções de professoras licenciadas em Pedagogia, a respeito dessa temática. Esses questionamentos me conduzem a buscar respostas na análise dos dados coletados através da aplicação de questionário com quatro professoras que atuam nas séries iniciais do Ensino Fundamental, no turno matutino, numa escola pública da rede estadual de ensino, situada num bairro da Zona Sul do município de Natal, no Estado do Rio Grande do Norte. Esse instrumento, de coleta de dados tenta perceber, principalmente, como quatro professoras – cada uma delas leciona em uma das séries iniciais da Educação Básica -concebem o fenômeno da morte e como o tratam junto aos alunos. Além do questionário como instrumental aplicado, uma análise foi realizada no texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais, na tentativa de encontrar trechos que abordassem o tema da morte, bem como possíveis orientações didático-pedagógicas aos docentes brasileiros, sobre o assunto em âmbito escolar, em especial na sala de aula. Portanto, este estudo foi desenvolvido com o intuito de realizar um trabalho monográfico, visando atender os requisitos legais da Academia para obtenção do grau de licenciado (a) em Pedagogia e teve como relevância abordar a morte enquanto objeto de conhecimento escolar.
Apontamentos teóricos. Este trabalho buscou fundamentação teórica nos trabalho de alguns estudiosos e em suas contribuições a respeito da temática da morte. Ariès (1977; 1981), referência obrigatória para quem se debruça sobre a morte propriamente dita e aspectos que a rodeiam; esse pesquisador enfatiza a compreensão da morte e dos rituais fúnebres realizados em sociedades cristãs ocidentais, desde a Idade Média até o século XX, e, assim, historiciza o ato de morrer, suscitando as diferentes percepções desse fato no decorrer de diferentes épocas. Depois, cito pesquisadores que buscaram fundamentação em Ariès, mas que orientam o seu trabalho para determinado campo. Kübler-Ross (2000; 2003b), propõe uma rehumanização da morte. Torres (1999), investiga o conceito de morte junto a crianças, efetivando um levantamento bibliográfico a esse respeito. Kovács (2003a; 2003b), investe numa teorização que aspira a uma educação para a morte, através da formação profissional, em especial, de trabalhadores da saúde e da educação. Bromberg (1996), estuda o luto por pequenas e grandes perdas, incluindo as fúnebres. Numa perspectiva antropológica, Melo (2000), uma das primeiras estudiosas a expressar o seu interesse pelo tema em questão no Rio Grande do Norte, inicialmente investigando ritos e rituais fúnebres na cidade de Natal (RN). Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), são documentos elaborados ao longo de vários anos de estudos e debates sobre as necessidades de uma escola que possibilite ao educando uma formação que enquadre as principais áreas de conhecimento e sua relação com o mundo natural. Os PCN não vieram para servir como modelo, como uma cartilha pronta e acabada, mas como referenciais nacionais, por mais que se estejam presentes às diversidades regionais e culturais. Devem servir como instrumento de apoio ao professor, auxiliando na execução do trabalho escolar. Os dez volumes dos PCN estão organizados da seguinte forma: Introdução e as áreas do conhecimento, como: Língua Portuguesa; Matemática; Ciências Naturais; História e Geografia; Arte; Educação Física; Temas Transversais e Ética; Meio Ambiente e Saúde; Pluralidade Cultural e Orientação Sexual. Nesta parte, é apresentada uma análise do texto dos PCN, a fim de perceber e registrar como a temática da morte – em especial, a do ser humano – está inserida nesse documento do Ministério da Educação (MEC), embora não serão apresentados todos os dez, apenas quatro – aqueles em que consideramos que a temática da morte esteja mais explicitada, a saber, o de Ciências Naturais, História e Geografia, Apresentação dos Temas Transversais e Ética, Meio Ambiente e Saúde.
Resultados .O resultado obtido com as respostas dos sujeitos da pesquisa aponta para uma negação do tema da morte na sala de aula. A professora MPPS, ao afirmar veemente que não trabalha com esse tema e que não houve necessidade, mascara o seu possível despreparo e insegurança frente ao assunto, elegendo a pouca idade dos seus alunos como fator primordial de impedimento. A professora NBSS, desconhece os recursos didático-pedagógicos que dão suporte ao professor das séries iniciais do Ensino Fundamental na abordagem do tema da morte. GIQS aponta que o professor não encontra recursos com facilidade para trabalhar com essa temática, pois ela considera um assunto que o professor não encontra [recursos didáticos] com facilidade para trabalhar. Parece demonstrar que a dificuldade não está em encontrá-los, mas em saber quais são eles e como utilizá-los. Assim, diante da análise das respostas das professoras entrevistadas, observo que essas educadoras reconhecem que existe uma lacuna em sua formação profissional de como lidar com a morte na sala de aula. Manifestam dificuldades em discutir e abordar essa temática com os seus alunos em sua prática docente (cf. OYAMA, 1999). Em oposição à declaração delas quanto à escassez de material didático-pedagógico, Kovács (2003b, p.57), afirma que ”há uma vasta literatura infantil que aborda o tema, inclusive no Brasil, que traz, na forma de histórias, os principais medos das crianças, como se pode observar em várias obras de Rubem Alves”. Além disso, ela realça o “Falando de Morte”, um projeto direcionado a diversos segmentos sociais e faixas etárias, que tem como objetivo principal sensibilizar a comunicação sobre o tema da morte e que foi criado pelo Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM), instituição que fornece assessorias, gravações e publicações nessa área. Considerações finais É possível uma educação para a morte? Essa pergunta consiste num desafio para aqueles que a têm como objeto de investigação teórica e empírica e que investem numa sensibilização sobre o tema da morte. Sabe-se da necessidade de desenvolver conhecimentos, questionamentos e reflexões que preparem o homem para enfrentar a sua finitude e a do outro, enquanto ser vivo e mortal. Quando ele se interroga acerca da morte, faz um fascinante exercício de compreensão da própria natureza humana. Comenius (1971), em sua obra intitulada “Didática Magna”, publicada em 1649, já apontava a necessidade de uma educação para a morte. Ao olha-la, o homem vê a si mesmo em sua essência, e totalidade, deparando-se com os limites de sua espécie, com o desconhecimento da única certeza da condição de estar vivo. A cada dia, essa lacuna se torna um desafio mais urgente na formação pessoal e profissional do ser, no lidar com a morte, principalmente quando pesquisas como esta apontam necessidades, desinteresses, dificuldades, desconhecimentos por partes de professoras de séries iniciais do Ensino Fundamental, em relação à morte enquanto objeto de conhecimento escolar. Kovács (2003a; 2003b), defende a possibilidade de uma educação para a morte, mesmo afirmando que seja uma tarefa bastante desafiadora, mas necessária aos profissionais da saúde e da educação, ao lidar com seus pacientes e alunos, respectivamente. No entanto, essa autora salienta que essa educação não traria fórmulas prontas ou de doutrinação para lidar com a morte. Seria uma educação voltada para o desenvolvimento pessoal, para o aperfeiçoamento e o cultivo do ser, de forma mais integral no meio social no qual ele se encontre inserido. Para Kovács (2003a; 2003b), o espaço ideal onde o homem receberia essa educação seria a escola formal, pois é nela que ele passa em “média 20 anos”, recebendo os ensinamentos de como conviver em sociedade e, concomitantemente, apreendendo informações que o educassem para o fim de sua existência material. A percepção que o profissional da educação tem da morte vai fundamentá-lo na compreensão dos ritos, rituais e enfrentamento perante esta realidade em sua prática cotidiana. Cada cultura tem sua forma própria de lidar com este tema. A cultura ocidental que se volta mais para a morte do que para a vida vive buscando uma forma de negar a existência da finitude biológica do homem, desenvolvendo tecnologia, cada dia mais avançada, com o intuito de precisar diagnóstico, combater doenças e, principalmente, prolongar o tempo de vida do ser humano. Todos esses artifícios para manter vivo alguém fazem com que o homem ocidental esqueça de educar-se e de educar o outro sobre a morte, com o propósito de as pessoas sensibilizarem-se para lidar com as suas limitações humanas. Enquanto instituição formadora, a escola deixa de auxiliar o aluno para que ele compreenda a sua condição humana, a sua finitude como ser biológico, na tentativa de uma conscientização da sua permanência temporária entre os vivos. A morte, cedo ou tarde, chega para qualquer vivente e, devido a isso, a necessidade de educar para lidar tanto com esta certeza quanto com a certeza da morte do outro, quando inevitavelmente a hora chegar. Desde os primórdios, a humanidade vem se preocupando com a morte, fazendo o homem refletir sobre quem é, de onde veio e para onde irá. Essas incertezas servem de inquietações que afligem o ser humano, único animal que tem a consciência de que vai morrer um dia. Essa angústia que atravessa séculos o faz chegar ao século XXI, sem conseguir desvendar a incógnita da morte. Durante a toda existência da humanidade, essa incógnita se perpetua como de difícil solução, cada dia mais cheia de incertezas e carregada de significados. Portanto, esta pesquisa se configura na continuidade de uma trajetória pessoal de estudos sobre a morte buscando refletir ou levar o outro – o profissional da educação – a refletir sobre a morte, contribuindo para transformá-la de tabu a objeto de conhecimento escolar.
Referências
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