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Currículo e propostas pedagógicas na educação infantil: entre (in) definições

Currículo e propostas pedagógicas na educação infantil: entre (in) definições
Maria Reilta Dantas Cirino
publicado em 22/01/2008 <www.partes.com.br/educacao/curriculoepropostas.asp>

 

Maria Reilta Dantas Cirino é Professora e pesquisadora da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte-UERN. Mestranda do PPGED/UFRN. E-mail: mariareilta@hotmail.com Orientanda da Profª. Drª. Denise Maria de Carvalho Lopes.

Este artigo tem como objetivo sintetizar acerca da evolução das concepções de currículo e proposta pedagógica na educação infantil. Discutimos como esses significados se apresentam em alguns trabalhos de autores da área do currículo. Essa discussão integra uma pesquisa em desenvolvimento no município de Caicó-RN, que envolve, entre outros aspectos, questões sobre o currículo e as propostas pedagógicas na educação infantil.

As propostas pedagógicas das instituições de educação infantil não contam com um campo específico de estudos e produções teóricas. Apesar disso, abrangem muitos temas, tais como o currículo, as diversas interações entre os segmentos que compõem a comunidade escolar, a formação de seus profissionais, as concepções de criança, infância, conhecimento, desenvolvimento e aprendizagem que se manifestam direta e indiretamente no cotidiano das práticas educativas.

As discussões sobre a educação infantil ampliam-se de forma significativa, modificando – pelo menos no plano teórico e legal – uma trajetória de omissão e de equívocos quanto ao entendimento de sua função social e de seu papel no contexto educacional. Isso não acontece de forma linear, mas num processo de idas e vindas, avanços e recuos que se fazem presentes, ainda no contexto atual de reconhecimento legal e de políticas públicas nessa área. Simultaneamente, também se modificam as formas de conceber a criança, a qual é hoje entendida como um ser histórico e social, sujeito de direitos, pessoa com especificidades. Considerar esses aspectos nos remete às formas de organização das instituições educativas.

De acordo com Silva (2005) ao tentarmos definir o significado de currículo teremos sempre uma redução, pois qualquer definição que adotarmos nos revelará apenas o que uma determinada teoria ou concepção de currículo pensa que seja o currículo. Dessa forma, a busca pela resposta ontológica, o “ser” do currículo será sempre uma resposta histórica, ou seja, o que em determinado contexto histórico uma teoria do currículo defende como tipo de ideal de conhecimento a ser ensinado em detrimento de outros. Nas palavras do autor:

O currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um universo mais amplo de conhecimentos e saberes seleciona-se aquela parte que vai constituir, precisamente, o currículo. As teorias do currículo, tendo decidido quais conhecimentos devem ser selecionados, buscam justificar por que ‘esses conhecimentos’ e não ‘aqueles’ devem ser selecionados. (SILVA, 2005, p.15).

Outro aspecto importante é que em toda teoria de currículo está subjacente uma concepção de homem, de sociedade, a qual definirá o tipo de conhecimento que deverá ser ensinado para que aqueles indivíduos venham a tornarem-se desejáveis e úteis àquela sociedade – o ideal humanista, o modelo competitivo neoliberal, o ideal de cidadania do estado-nação, o indivíduo crítico das teorias educacionais críticas – constituindo-se, dessa forma, em questão de identidade e de subjetividade, bem como em questões de poder ao delimitar o tipo de conhecimento a ser ensinado, o qual buscará ativamente obter e manter a hegemonia de seus preceitos, contribuindo sobremaneira para definir o que somos e aquilo no que nos tornaremos.

Nessa perspectiva, todas as teorias educacionais, embora não sejam assim nomeadas, são teorias do currículo. Mais especificamente, estudos na área (GIROUX, 1986; APPLE, 1989; COSTA, 2001; SILVA, 2005; MOREIRA e SILVA, 2005) definem as teorias do currículo como: tradicionais¹, críticas² e pós-críticas³.

Sacristán (2000) considera que a teorização sobre currículo não se encontra sistematizada de forma adequada, aparecendo ora como conceitos técnicos de uma prática a posteriori, ora como a explicação dos pressupostos dessa prática. Analisa diversas definições e aponta que o currículo traz em si a prática educativa institucionalizada e as funções sociais da escola, sendo reflexo de um modelo educativo determinado que

[…] relaciona-se com a instrumentalização concreta que faz da escola um determinado sistema social, pois é através dele que lhe dota de conteúdo, missão que se expressa por meio de usos quase universais em todos os sistemas educativos, embora por condicionamentos históricos e pela peculiaridade de cada contexto, se expresse em ritos, mecanismos, etc., que adquirem certa especificidade em cada sistema educativo. (SACRISTÁN, 2000, p. 15).

O mesmo autor aponta que o currículo pode ser analisado a partir de cinco âmbitos diferenciados: 1) do ponto de vista de sua função social como ponte entre a sociedade e a escola; 2) como projeto ou plano educativo, pretenso ou real, envolvendo aspectos como experiências, conteúdos, etc.; 3) como a expressão formal e material desse projeto que deve apresentar sob determinado formado, os conteúdos, as orientações e as sequências para abordagem; 4) sob o entendimento como um campo prático analisando-o como: campo prático, território de intersecção de práticas diversas e, sustentação do discurso entre a teoria e a prática; ainda como um tipo de atividade discursiva e acadêmica.

Etimologicamente, a palavra “currículo” vem do latim currere que significa “correr”. Contudo, Berticelli (2001) alerta que ao buscarmos a origem da palavra currículo, na forma como a entendemos hoje – na dupla dimensão de documento escrito e daquilo que é educativo – mergulhamos num emaranhado semântico e histórico que de forma muito lenta vem sendo esclarecidos e como contribuição nessa trajetória indica a seguinte definição enciclopédica:

Currículo, do ponto de vista pedagógico, é um conjunto estruturado de disciplinas e atividades, organizado com o objetivo de possibilitar seja alcançada certa meta, proposta, fixada em função de um planejamento educativo. Em perspectiva mais reduzida, indica a adequada estruturação dos conhecimentos que integram determinado domínio do saber, de modo a facilitar seu aprendizado em tempo certo e nível eficaz. (Enciclopédia Mirador Internacional, apud BERTICELLI, 2001, p.161).

Considerando esses aspectos, os quais vão delineando que o currículo não se constitui meramente como a técnica de definição de conteúdos, nem se esgota no documento explícito, mas sim como um instrumento sistematizado para o ordenamento do espaço de relações dinâmicas e sociais que se efetivam na prática do ato educativo, entendemos que buscar compreender as questões curriculares envolve identificar e compreender o conceito de proposta pedagógica, sendo o currículo um dos itens dessa proposta e ao mesmo tempo em que o currículo permeia todo o fazer escolar, compreendido nessa dimensão ampla apregoada pelos autores, sendo o “pulsar” da instituição – na sala de aula, nos espaços recreativos, nas relações entre os diversos segmentos institucionais. Assim, se faz necessário precisar o que estamos considerando como proposta pedagógica. Para essa compreensão, é de substancial importância nos remeter ao documento elaborado pelo Ministério da Educação e Cultura (MEC), em 1996, que tem como objetivo, entre outros aspectos, contribuir com estados e municípios na análise, elaboração e implementação de suas propostas pedagógicas ou curriculares, sendo apresentadas contribuições de diversos estudiosos consultados para esse fim e de uma forma explícita ou não recorrem as questões do currículo para compreensão do conceito de proposta pedagógica.

Machado (BRASIL, 1996) reconhece a diversidade de termos que têm sido usados para indicar as propostas das instituições educacionais para a infância. Contudo, opta pelo termo projeto educacional-pedagógico, defendendo que esse termo ao mesmo tempo em que sugere uma organização implica tomar posições levando-se em conta limites e possibilidades do real. Aponta também a ideia de incompletude permanentemente transformada no cotidiano; dosa com equilíbrio a definição/indefinição que deve permear o plano cuja intenção é servir de guia à ação dos profissionais nas instituições de educação infantil. Enquanto Oliveira (BRASIL, 1996) também utiliza mais o termo currículo, definindo-o como um “balizador de ações”, o qual deve explicitar orientações político-ideológica-técnica. Parte do pressuposto da criança como cidadã plena de direitos, devendo ser educada em ambientes estimuladores ao seu desenvolvimento, capazes de possibilitar formas cada vez mais complexas e significativas de pensar e sentir.

Kishimoto (BRASIL, 1996) recorre à construção histórica de sentidos da palavra currículo abordado-o numa concepção ampla, para definir as experiências de aprendizagem, nas quais considera imprescindível a definição de opções psicológicas, sócio-culturais, epistemológicas e políticas, afirmando que: “ […] inclui definições sobre o tipo de escola que se deseja, o que se pretende oferecer, a forma de administra-la, o contexto histórico, ideológico, […], cultural, político, econômico e psicológico em que se insere […].

Para Kramer (BRASIL, 1996) um currículo envolve tanto as bases teóricas que o fundamentam como os aspectos técnicos e práticos que viabilizam sua concretização. Dessa forma não acredita que exista diferença conceitual entre os termos currículo e proposta pedagógica, nesse sentido afirma:

[…] uma proposta pedagógica é um caminho, […] nasce de uma realidade que pergunta e é também busca de uma resposta; é diálogo. […] é situada, traz o lugar de onde fala e a gama de valores que a constitui; revela dificuldades que enfrenta, problemas que precisam ser superados e a direção que a orienta, expressando uma vontade política, que por ser social e humana, não é nunca uma fala acabada […].

Ao analisar os conceitos sobre proposta pedagógica e currículo dos diferentes consultores do MEC, Kramer (2007) considera que o esforço dos mesmos não se restringe às questões semânticas e embora concorde com as ambiguidades dos termos considera como mais adequado a nomenclatura proposta pedagógica, em vista de acreditar que a mesma revela um posicionamento político no sentido de mesmo que cada secretaria elabore seu projeto político-pedagógico este deve servir de referencial para cada escola elaborar sua própria proposta envolvendo todos os atores que compõem a prática pedagógica.

Ribeiro (2000, p.13) ao apresentar o debate sobre a organização curricular dos cursos de graduação utiliza a nomenclatura proposta curricular e entende o currículo como “ […] um instrumento orientador da ação educativa em sua totalidade […] envolve o esforço permanente e complexo do grupo na elaboração de significados sociais, culturais e políticos […].”

Reconhecemos a diversidade de nomenclaturas em relação aos sentidos atribuídos ao currículo e a proposta pedagógica e consideramos o valor de todas essas definições, visto que bem fundamentadas em posturas políticas assumidas num determinado contexto, essas discussões muitas vezes conflituosas servem-nos ao processo de compreensão de tais termos que ao invés de se separarem são complementares e carregam em si uma perspectiva dialética: currículo como um documento que define possibilidades de aprendizagens, conteúdos e metodologias que em certo sentido direcionam o fazer educacional, permeado por valores, sentidos e significados atribuídos pelos sujeitos no cotidiano escolar, define aspectos comuns ao nível a que se refere e ao mesmo tempo deixa a abertura para serem considerados os aspectos de cada realidade em que se insere, é parte concreta da proposta pedagógica e ao mesmo tempo é inconcluso, inacabado; proposta pedagógica – processo e produto – contém o currículo e enquanto documento oficial define a intencionalidade da instituição educativa, assumida com base na concepção de homem e de sociedade que se deseja construir, é instrumento organizativo da instituição. Por ser inacabada envolve a negociação constante entre todos os segmentos que compõem a instituição escolar, bem como é arena de resistências, rupturas e transformações.

Ambos – currículo e proposta pedagógica – estão impregnados de questões políticas, sociais e culturais, de concepções e intencionalidades, direcionam e estabelecem preceitos de ação e ao mesmo tempo tem um sentido de incompletude a ser negociado, construído na realidade e não podem ser compreendidos sem o dinamismo da prática educativa, das relações de poder, respeito às diferenças e das condições reais em que ambos se concretizam. Essas concepções apontam, no nosso entendimento, para a necessidade de que tais concepções sejam problematizadas no interior das instituições educativas envolvendo todos os segmentos educacionais responsáveis pela educação infantil.

REFERÊNCIAS

APPLE, Michael W. Educação e poder. Tradução de Maria Cristina Monteiro. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. 201p.

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Ensino Fundamental: Departamento de Política de Educação. Propostas pedagógicas e currículo em educação infantil. Brasília, DF, MEC/SEF/DPE/COEDI. 1996.

BERTICELLI, Ireno Antonio. Currículo: tendências e filosofia. In: COSTA, Marisa Vorraber. (org.). O currículo nos limiares do contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. pp. 159-176.

COSTA, Marisa Vorraber. (org.). O currículo nos limiares do contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 176 p.

GADOTTI, Moacir. Pressupostos do projeto pedagógico.In: MEC, Anais da Conferência Nacional de Educação para Todos. Brasília, 28/8 a 2/9/94.

GIROUX, Henry. Teoria crítica e resistência em educação. Petrópolis: Vozes, 1986.

Kramer, Sonia. Propostas pedagógicas ou curriculares de educação infantil: para retomar o debate. Disponível em: www.ced.ufsc.br/~nee0a6/tsoniak.PDF. Acesso em: 24/05/2007. 16 p.

MOREIRA, Antônio Flávio B; SILVA, Tomaz Tadeu da. Currículo, cultura e sociedade. (org.) 8. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

SACRISTÁN, J. Gimeno. O currículo: uma reflexão sobre a prática. 3. ed. Porto Alegre: Armed, 2000. 347p.

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 2. ed. (8ª. reimpressão). Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

RIBEIRO, Márcia Maria Gurgel. Diferentes espaços / tempos da organização curricular. In: ALMEIDA, Maria Doninha de. (org.). Currículo como artefato social. Natal (RN): EDUFRN – Editora da UFRN, 2000. (Coleção Pedagógica; n.2).

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