João dos Santos Filho[1]
Rodrigo Meira Martoni[2]
publicado em 03/11/2007 como www.partes.com.br/turismo/santosfilho/ufanismo.asp
RESUMO
As políticas públicas de turismo no Brasil, desde a criação da Empresa Brasileira de Turismo – EMBRATUR, em 1964, até o final da gestão do ministro Walfrido dos Mares Guia, apresentam algumas características comuns como a exaltação desmedida das atratividades nacionais no contexto de ações do Estado que privilegiam investidores e turistas internacionais, além de programas que não têm viabilizado mudanças na estrutura social do país. Portanto, suas características principais estão interligadas ao ufanismo, à sandice e à galhofa. Para entender tal situação, são estudados e evidenciados acontecimentos históricos em conjunto com o turismo nacional, num desvendar de segredos que somente a Economia Política pode nos auxiliar a fim de compreender esse objeto. PALAVRAS CHAVE: turismo, políticas públicas, ufanismo, sandice, galhofa.
RESUMEN – Las políticas publicas de turismo en Brasil desde la creación de la empresa Brasileña de Turismo – EMBRATUR en 1964 hasta el final de la gestión del ministro Walfrido dos Mares Guia. Presentan algunas características comunes como la exaltación desmedida de las atractividades nacionales en el contexto de acciones del Estado que privilegian investidotes y turistas internacionales. Además de programas que no viabilizan cambios en la estructura social del país. Por tanto, sus características principales están interrelacionadas al ufano, tontería y gallofa. Para eso, son estudiados y evidenciados acontecimientos históricos en conjunto con el turismo nacional, en un desvendar de secretos que solamente la Economía Política puede auxiliarnos a comprender este objeto. PALABRAS CLAVE: turismo, políticas públicas, ufano, tontería, gallofa.
ESCLARECIMENTOS PRELIMINARES As políticas públicas de turismo no Brasil acompanham a trajetória das descontinuidades administrativas do Estado brasileiro e apresentam algumas características básicas comuns que alimentam um continuísmo administrativo. Nossa intenção é demonstrar que estas questões seguem e persistem na matriz ideológica de base idealista a favor do turismo receptivo. Para tanto, optou-se pelo estudo geral das principais linhas de ação presentes nos principais períodos históricos em que o turismo foi objeto de política pública ou, pelo menos, assim se apresentou. Para a compreensão dessas políticas, realizamos inicialmente uma abordagem do Estado Neoliberal, que delega, ao setor privado, a responsabilidade de planejamento e fomento da coisa pública, esquecendo-se de que a competitividade imposta pelo sistema faz com que o núcleo central de preocupação da iniciativa privada seja responsável pela manutenção e ampliação da mais valia e não das necessidades coletivas sociais. Justamente no contexto do Estado mínimo e também na utilização da máquina estatal em favor de interesses privados, são produzidas pontualmente algumas políticas públicas de turismo, caracterizadas pelo ufanismo, pela sandice e pela galhofa. Podemos compreender o ufanismo como a idolatria aos atrativos da pátria, e, propriamente no turismo, diversas ações foram e têm sido influenciadas por esse discurso, com a idealização de regiões com base em um glamour apelativo e construído artificialmente. Outra dimensão problemática na qual se apoiam as diretrizes do turismo nacional é a sandice do estabelecimento de uma estrutura incompatível com a realidade socioeconômica brasileira, uma vez que foi e continua sendo formatada para o estrangeiro. E, finalmente, também motivo para galhofa, é o programa Roteiros do Brasil que, por não se basear na organização do turismo e em outros setores a nível local, deixa de ter a consistência necessária para promover mudanças substanciais. A partir desses apontamentos, foi elaborado o presente trabalho, evidenciando que a história e o turismo se cruzam num desvendar de segredos e fatos caracterizados pelo exagero vinculado à insensatez e ao gracejo, que, somados, resultam geralmente em tragédia.
1 O DESMORONAMENTO DO ESTADO PELAS AÇÕES NEOLIBERAIS
O auxilio da abordagem histórico-crítica, no contexto do que são políticas públicas, permite a compreensão dos direcionamentos do turismo nacional. As comunidades gregas referiam-se às cidades como polis, daí vem o termo política: ações que têm como foco a administração dos negócios públicos, a polis, o Estado. Como salienta Chevallier (1982, p.11), “uma política deve necessariamente tomar posição em face dos problemas da natureza do homem, de sua condição e de seu destino […]”, sendo que qualquer classe política deve posicionar-se em relação ao Estado e as políticas públicas devem ser pensadas e elaboradas tendo em vista o benefício das vontades e necessidades coletivas. Para o entendimento das políticas públicas na atualidade, é necessário partir do seu eixo norteador, ou seja, o Estado Neoliberal. Com um enfoque centrado nas características da sociedade contemporânea, o termo remete-nos ao que é novo, indicando a recuperação e reformulação de idéias e ações liberais – o chamado pós-modernismo[3]. Trata-se do liberalismo com vestes novas, colocadas justamente para promover o desmonte e pulverização do Estado em benefício de corporações nacionais e estrangeiras. Nesse sentido, convêm salientar que a fundamentação e as atitudes de governos neoliberais tentam negar a existência da luta de classes, valorizando a necessidade dos fatores de produção, substituindo a ideia de conflito entre as classes sociais pelo pacto da harmonia e coexistência pacífica de interesses. Para os neoliberais, todos os bens possuem valor em função da utilidade que os mesmos apresentam aos consumidores, não considerando a teoria do valor trabalho e as relações de produção que dominam o mercado capitalista. Para os neoliberais, existem bens e não mercadorias, pois consideram que a noção de bem se associa à satisfação de desejos do ser humano, sendo que o objeto só adquire valor em contato com o sujeito, ou seja, ele não tem um valor de troca em si, mas somente quando entra em contato com a pessoa. É justamente essa a fundamentação do discurso utilizada pelos neoliberais para defender o afastamento do Estado e a livre circulação de mercadorias, porque, por meio dele, espalham a ideia de que todas as coisas funcionam equilibradamente no contexto de um sistema em que a oferta se ajusta às pressões da demanda, e os custos de produção se ajustam ao valor determinado pelas preferências individuais (SOUZA, 2000), ou seja, é o mercado que regula a atividade produtiva, e o Estado não deve interferir em qualidade, preço, quantidade, localização geográfica e distribuição. Na fase de mundialização do Capital, em que os investimentos de corporações ocorrem em território mundial e a globalização financeira evidencia-se, a tendência é o aumento da competitividade dos mercados, tendo como braço operacional os conglomerados transnacionais. Nesse sentido, os governos subservientes ao capital internacional privilegiam o mercado em detrimento da coletividade e caminham a passos largos para acentuar o grau de dependência que já era marcante no Brasil desde a década de 50: As economias centrais, depois de consolidarem seu sistema econômico nacional de maneira autocentrada, impulsionados pelo dinamismo da reprodução do capital, ampliaram em escala mundial o seu espaço vital, modelando assim a natureza extrovertida da economia periférica. Posteriormente, a partir do último pós-guerra, em decorrência da superacumulação de capital e das vantagens comparativas quanto ao emprego da mão-de-obra, realizaram o deslocamento da produção e do capital do centro para os países subdesenvolvidos, bloqueando o desenvolvimento das economias nacionais emergentes e superpondo-se aos próprios Estados nacionais, submetidos por razões óbvias aos seus interesses. (MACHADO, 1999, p.134) A Ditadura Militar dilapidou o Estado brasileiro e abriu um campo propício à corrente de pensamento e ações neoliberais, potencializando o grau de dependência do Brasil e abalando os projetos de base nacionalista em prol dos ditames políticos e econômicos de países dominantes. Com o declínio do Estado de Bem-Estar Social em diversos países, começaram, a partir do final de 1970, as políticas neoliberais. Especificamente no Brasil, Collor iniciou a fase neoliberal de forma audaciosa, que foi expandida e aprimorada por Fernando Henrique Cardoso e teve continuidade com Luis Inácio Lula da Silva. Enquanto esperava-se que este governo rompesse com os interesses do Fundo Monetário Internacional, iniciasse de fato a reforma agrária e recuperasse o Estado do processo de privatização iniciado há décadas, ele, ao contrário, não promoveu rupturas com o neoliberalismo (ANTUNES, 2004). São políticas dos governos que seguem esta corrente: a promoção da desregulamentação, o aniquilamento dos sindicatos, a privatização e a concessão à iniciativa privada com a desmontagem dos serviços públicos e a “polarização social” (ANDERSON, 1998, p. 19). Na fase atual do Capitalismo, as atitudes dos governos neoliberais são legitimadas pela sociedade quando esta é despolitizada, passiva e desagregada socialmente. Assim, sua disseminação e aplicação pode ser percebida quando se deixam de lado os projetos nacionais e adotam-se os transnacionais; promove-se a separação entre política, Estado e sociedade; e utiliza-se a máquina estatal em prol das classes que detêm os meios de produção nacionais ou transnacionais (IANNI, 2004, p.56). Para Bauman (1999, p.15), está em curso “um consistente e inexorável deslocamento dos centros de decisão, junto com os cálculos que baseiam as decisões tomadas por esses centros, livres de restrições territoriais”. Esse é o campo para o entendimento das políticas públicas atuais de turismo no Brasil: com o afastamento do Estado em prol da iniciativa privada e imposição de suas regras, tem ocorrido uma verdadeira destruição das iniciativas desenvolvimentistas de caráter local: A dominação de grupos transnacionais que prezam tão somente as “perscpectivas de retorno” e, para isso, não internalizam custos sociais e ambientais, ocasionam, muitas vezes, um verdadeiro apartheid entre complexos e populações locais. A privatização de localidades que podem se firmar como destinos turísticos e todas as demais atividades-chave para a soberania de uma nação […] faz parte do anseio de dominio do capital internacional que atende, única e exclusivamente, a seus objetivos de lucro. (MARTONI, 2006, p.86) Assim, escrever sobre as políticas públicas de turismo no Brasil constitui um passeio histórico repleto de entusiasmo e também de grandes decepções, pois a preocupação do Estado capitalista brasileiro sempre foi com o turismo receptivo, como instrumento para a captação de recursos econômicos e poucas vezes direcionado ao lazer e ao turismo interno da classe trabalhadora, salvo nos períodos do Estado populista[4]. As reflexões posteriores, além de apontar a trajetória histórica das políticas públicas de turismo, salientam a necessidade de rompimento e mudanças que não foram realizadas pelo ex-ministro Mares Guia.
2 REFLEXÕES SOBRE AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE TURISMO: DE 1970 À GESTÃO DE MARES GUIA Em 1975, ocorreu, no Rio de Janeiro, o I Encontro Nacional sobre Lazer, Cultura, Recreação e Educação Física, realizado pelo Serviço Social do Comércio, Serviço Social da Indústria e Ministério do Trabalho. O evento foi realizado no Hotel Glória, em plena Ditadura Militar, de 24 a 29 de agosto, recebendo todo o apoio do Estado que entendia o lazer como instrumento capaz de amenizar a relação capital e trabalho. O evento foi marcado pela presença de autoridades, como o Ministro do trabalho Arnaldo da Costa Prieto, que roubou o espetáculo: no começo de sua exposição, perante um auditório com mais de 700 pessoas, houve um estampido que movimentou a segurança do referido ministro. Tratava-se da lâmpada de magnésio de um dos potes de iluminação apoiado por um tripé que estourou. O tumulto foi resolvido quando um dos operadores de câmara detectou o acidente. Após o esclarecimento do fato, as pessoas voltaram a seus lugares e a calma tomou conta do ambiente. O ministro do trabalho, que havia levado um enorme susto, pensando que se tratava de um atentado contra ele, retomou a cadeira e sentou-se. O que ele não sabia é que a substância da lâmpada de magnésio fora arremessada, com o estouro, diretamente em seu assento. O bravo ministro deu início à palestra, permanecendo sem movimentos bruscos dos quadris e, ao terminar, foi direto para o hospital cuidar do glúteo. O curioso é que, neste encontro, foi apresentado um programa elaborado nos Estados Unidos contra a obesidade e a falta de exercícios físicos dos americanos. Chamado “Mexa-se”, foi posteriormente copiado pela TV Globo, com o apoio do governo militar como forma de desviar atenção dos acontecimentos de repressão e tortura às quais a população civil estava submetida. Apesar de entendermos os interesses da Ditadura e do principal meio de comunicação do país em oferecer à sociedade a ideologia do “pão e circo”, entendemos, também, que pelo menos havia ou sobrava a “nobre” intenção de demonstrar preocupação com o lazer e o turismo da população brasileira. É possível perceber que, nesse período, a burguesia, juntamente com governo militar, incentivou a prática do esporte, lazer e recreação, como forma de criar uma juventude sã e com moral civilista para a construção de uma cidadania sem a ideologia comunista. O turismo e o lazer foram objetos de um encaminhamento pelo Estado quando ocorreram as discussões e seminários elaborados pelo pioneirismo do professor, investigador e sociólogo Renato Requixá que, na direção do SESC, criou uma equipe de pesquisadores e trouxe para o Brasil Pierre Lane e o sociólogo e educador francês Joffre Dumazedier. Na ocasião, conseguiu-se colocar o país na discussão humanista do esporte, lazer e recreação, além de destacar o turismo como algo que pertence e é direito de todas as classes sociais. Nessa época, parte dos meios de comunicação, fora obrigada a defender o golpe construindo a ideia de que os militares vieram para salvar a nação da corrupção e do comunismo, fazia oposição aos mesmos, publicando nos jornais receitas de bolo no espaço da matéria censurada. Outros, como os tablóides, atreviam-se a publicar abertamente textos combativos ao governo ditatorial. Com isso, percebemos que nem tudo foi perdido, porém os processos de descontinuidade e apagamento da memória histórica, no que se refere às políticas públicas de turismo no Brasil voltadas à população trabalhadora, sofreram um processo constante de amnésia. Não se enfatizam, entretanto, os períodos dos governos populistas em que a prática esportiva e de lazer era estimulada pelo Estado, que construiu centros esportivos e abriu espaços campestres e balneários para a classe trabalhadora. O que fica em evidência são os dados quantitativos referentes ao aumento dos gastos pelo turista estrangeiros; o culto a uma hospitalidade voltada para os não-nacionais; o número de eventos captados no exterior; o aumento dos vôos chartes e a prática do turismo sexual. Na verdade, historicamente, as políticas públicas de turismo partem de um planejamento pautado e pontilhado pelo ufanismo, sandice e galhofa. 2.1 UFANISMO
[De ufano, do v. ufanar, + –ismo; por alusão ao livro Por que Me Ufano do Meu País, do Conde Afonso Celso.] S. m. Brás. Atitude, posição ou sentimento dos que, influenciados pelo potencial das riquezas brasileiras, pelas belezas naturais do país, etc., dele se vangloriam desmedidamente. (FERREIRA, 1986)
O ufanismo é um produto que surge, forma-se e se desenvolve em decorrência dos interesses do Capital, por meio de um movimento de dupla pressão econômica e ideológica. A primeira é decorrente do processo de colonização (exploração e pilhagem) dos trópicos que transformaram o continente latino- americano em uma grande empresa para o comércio de mercadorias, com base nos recursos naturais que foram sugados dentro da lógica imperialista. Esta questão fica clara nas pesquisas realizadas pelo historiador Eduardo Galeano, em seu livro As veias abertas da América – Latina: É a América Latina a região das veias abertas. Desde o descobrimento até nossos dias, tudo se transformou em capital europeu ou, mais tarde, norte-americano, e como tal tem-se acumulado e se acumula até hoje nos distantes centros de poder. Tudo: a terra, seus frutos e suas profundezas, ricas em minerais, os homens e sua capacidade de trabalho e de consumo, os recursos naturais e os recursos humanos. O modo de produção e a estrutura de classes de cada lugar têm sido sucessivamente determinados, de fora, por sua incorporação à engrenagem universal do capitalismo. (GALEANO, 1985, p.14) A segunda ocorre pela cristalização do poder político, que a burguesia concentra, determinando qual será a imagem do país que deve ser veiculada no exterior. Podemos começar pela Carta sobre o descobrimento do Brasil, escrita por Pedro Vaz de Caminha, em que encontramos a seguintes referências principais: Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos; E tomou dois daqueles homens da terra que estavam numa almadia: mancebos e de bons corpos. Um deles trazia um arco, e seis ou sete setas. E na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas não os aproveitou; A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixa de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. (www.cce.ufsc.br/~nupill/literatura/carta.html). Os colonizadores (entendidos como exploradores), quando aqui desembarcaram, trouxeram consigo uma determinada visão de mundo lastreada de preconceitos, que vão refletir o comportamento que os mesmos tiveram para com os nativos da terra, seja destruindo ou explorando, embora sempre integrado a uma fricção inter-étnica como diria Darcy Ribeiro. Portanto, escravizar, estuprar e matar os nativos da terra eram atos comum entre os exploradores europeus. O contato dos portugueses com os nativos foi algo extremamente traumático, visto que a cultura mais frágil militarmente se perdeu. O fato é que o processo neocolonialista, implementado pelo Capital, adquire e reveste-se de um caráter de exploração usando o viés religioso, como pode ser percebido na Carta de Caminha. Contudo, esse processo revela que seu real interesse eram os recursos minerais e humanos. Darcy Ribeiro, em seu livro “O povo brasileiro”, esclarece-nos esse fato, quando afirma: Visivelmente, os recém-chegados, saídos do mar, eram feios, fétidos e infectos. Não havia como negá-lo. É certo que, depois do banho e da comida, melhoram de aspectos e de modos. Maiores terão sido, provavelmente, as esperanças do que os temores daqueles primeiros índios. Tanto assim é que muitos deles embarcaram confiantes nas primeiras naus, crendo que seriam levados a terras sem Males, morada de Maíra ( Newen Zeytung 1515 ). Tantos que o índio passou a ser, depois do pau-brasil, a principal mercadoria de exportação para a metrópole. ( RIBEIRO, 1995, p.42 ) A ideia de que os brasileiros são liberados e que “tudo pode”, porque não há limites para seu comportamento sexual, é uma lógica construída historicamente decorrente daquilo que os colonizadores aqui presenciaram, segundo seus preconceitos. Eles viajaram cerca de 40 dias entre Portugal e Brasil, chegando exaustos e imundos, afinal se banhavam nos navios com vinagre e era comum sofrerem com diarreias e vômitos. Ao desembarcar, sentiam o cheiro da mata nativa composta de vários odores fantásticos, ao mesmo tempo em que se deparavam com um novo mundo, sendo estes recursos acentuados pelas lembranças do tempo infernal de moradia no navio. Seus olhos adquiriam uma percepção de estar no paraíso, refletida na afirmação de que “as suas vergonhas, tão alto e tão cerradinho e tão limpo das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam”. O texto de Caminha esta repleto de comentários referentes ao impacto da nudez sentido pelo estrangeiro. Em uma parte, afirma: “suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descobertas, que não havia nisso desvergonha nenhuma”, e em outra, completa com uma declaração de apreciação estética: “Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons”. Mais adiante, admite que o povo nativo seja “gente bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva”, mas volta a elogiá-lo: “e naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser”. Mais adiante, descreve uma situação difícil e cômica ao mesmo tempo: Entre todos estes que hoje vieram não veio mais que uma mulher, moça, a qual esteve sempre à missa, à qual deram um pano com que se cobrisse; e puseram-lho em volta dela. Todavia, ao sentar-se, não se lembrava de estendê-lo muito para se cobrir. Assim, Senhor, a inocência desta gente é tal que a de Adão não seria maior — com respeito ao pudor. (CAMINHA) Não há dúvida que os portugueses entendiam o Brasil como um paraíso sexual, sendo os trópicos a base do reino das belezas naturais do homem e da mulher (por isso achavam que haviam descoberto o paraíso terrestre) em que todos viviam nus. Na verdade, uma terra sem rei e sem lei, onde tudo se pode e nada é impossível. Estes elementos sinalizam a visão etnocentrista que trabalha com um arcabouço de formas, caminhos e razões que o pensamento produz por meio de profundas distorções que se perpetuam nas emoções, sentimentos, valores, pensamentos, imagens e representações que fazemos da vida daqueles que são diferentes de nós, isto é, o outro. Este problema não é exclusivo de uma determinada época nem de uma única sociedade, visto que o etnocentrismo se constitui uma das tendências presente na história da humanidade. Assim, salientamos algumas de suas características que se sobressaíram na segunda metade da década de 60. O Regime Militar de 1964 teve apoio das classes conservadoras e de setores fundamentais da sociedade civil. Nos centros escolares, haviam os famosos “dedos-duro”, e os professores que discordassem do regime ou promovessem o pensamento critico dos alunos eram sumariamente presos e interrogados, demitidos, torturados e/ou mortos. Esta época, aclamada de ufanista apareceram os slogans: “Brasil, Ame-o ou deixe-o”; “Este é um País que vai para frente”; “Brasileiro gosta de levar vantagem em tudo” (esta alusiva à Copa do Mundo de 1970, a famosa “Lei de Gerson”); “Ninguem segura este país”; “Brasil potência”; “Brasil gigante”. O governo passou a usar a propaganda formatada por um marketing de primeira linha para conseguir a simpatia do povo e, com isso, construir um Estado que disseminasse a sensação de otimismo generalizado, visando esconder os problemas do regime militar fascista. O futebol foi usado com objetivos ufanísticos, pois há uma militarização em sua organização desde a escolha de jogadores, passando pelo técnico, até a estrutura física dos grandes estádios de futebol. Quando os militares se deram conta de que o desenvolvimento do turismo poderia ser uma saída para combater a crise economica, social e moral do Estado, o qual haviam recem submetido ao golpe, criaram a EMBRATUR e, posteriormente, o Sistema de Turismo, vinculado ao Ministerio das Relações Exteriores, como pode ser constado no livro de Joaquim Xavier da Silveira, primeiro presidente da EMBRATUR: O turismo passava a ser considerado indústria básica constituindo atividade de interêsse nacional. Permitia-se pela primeira vez aplicação de incentivos fora das áreas da SUDENE e SUDAM, entregando-se à iniciativa privada instrumento eficiente e capaz de imprimir um nôvo ritmo ao desenvolvimento do turismo. (SILVEIRA, s/d, p. 21) Nessa perspectiva, o turismo adquire a qualificação de mercadoria e, para tal, havia necessidade da criação de uma estrutura ágil com a finalidade de promover o Brasil no exterior e divulgar uma imagem que apelasse para as “qualidades inatas” do povo brasileiro. O intuito principal era combater o perigo dos comunistas que estavam alojados na imprensa brasileira, bem como daqueles que foram para exterior e eram os responsáveis pela propaganda difamante contra o Brasil por meio de publicação de tablóides, panfletos, jornais e revistas que denunciavam a ditadura fascista, suas torturas e execução de seus oponentes. O General Milton Tavares de Souza expõe que: Há uma frente de informação que difama nosso país e mantém em nossa terra repórteres que mentem lá fora, apresentando um quadro brasileiro inteiramente falsificado, inteiramente pejorativo. Nada de importante acontece no país sem a ação dos comunistas. Há uma poeira vermelha nos olhos do povo e de grande parte das autoridades brasileiras. (O Estado de São Paulo. 2 de outubro de 1976) A EMBRATUR foi criada oficialmente com a função de ordenar uma política nacional de turismo, conforme relata, Joaquim Xavier da Silveira, um dos diretores da Associação Comercial do Rio de Janeiro. A ascensão ao cargo demonstrava o poder do Rio de Janeiro como força do turismo nacional e a tônica do padrão dado à divulgação do Brasil: mar, sol e mulheres douradas da praia de Ipanema, com seu biquíni, padrão exportação. Extraoficialmente, tratava-se de um órgão encarregado de fazer a contrapropaganda dos exilados no exterior, enaltecendo as maravilhas do Brasil, ao passar a ideia de país dos trópicos e núcleo mundial do pecado capital. Buscando sua função inicial de porta-voz do governo brasileiro, elaborou uma campanha mercadológica oficialista, mostrando a ideia de um Brasil multirracial de tonalidade pacífica, democrático e ordeiro para o mundo. Nessa época, apelou-se para uma propaganda de exploração do erotismo e da beleza da mulher brasileira, bem como para o lado exótico e a diversidade cultural, de nosso povo demonstrando uma convivência social cuja existência era mais produto de romances e novelas do que da realidade histórica do país. A estratégica consistiu em se montar uma propaganda política oficial que seria veiculada por meio de um órgão de turismo, em que as belezas do Brasil serviriam para ocultar o que de fato estava ocorrendo no país. Com um apelo voltado à plástica da mulher brasileira, ao carnaval e à hospitalidade do povo em bem-receber o turista estrangeiro, criaram-se instrumentos que exploravam o lúdico das pessoas, transmitindo-lhes uma mensagem de otimismo e ufanismo nacionalistas. O ufanismo, quando usado no discurso, configura-se como uma linguagem que utiliza a filosofia existencialista averbada pelo idealismo vulgar, que só permite o entendimento da realidade via idolatria a princípios etnocêntricos. Este discurso palmilha a política brasileira do turismo, constituindo um elemento presente em quase toda a literatura produzida dentro e fora da academia. A nossa preocupação é que no turismo há um apego ao lúdico e uma constante tentativa de idealizar uma região, segundo os parâmetros de um glamour apelativo e construído artificialmente que, não raras vezes, vaza para as raias do irracionalismo. Associado aos interesses dos empreendimentos turísticos, a fala ufanista facilita ações para a reprodução e manutenção do Capital que nem sempre faz parte do interesse coletivo. Esse ufanismo produz uma idealização nacional que alimenta e formata a imagem que divulgamos do Brasil no exterior, desde a chegada dos europeus até a atualidade.
2.2 SANDICE
[De sand-, como em sandeu, + ice.] S. f. Qualidade, condição ou ação de sandeu; necedade, parvoíce, insensatez, tolice (FERREIRA, 1986).
O Plano Nacional de Turismo 2002 a 2007 está comprometido, por sua natureza, com princípios economicistas, próprios do discurso neoliberal no qual foi formatado, cuja base é a busca do crescimento econômico do turismo decorrente da criação de serviços destinados a atender exclusivamente o turista estrangeiro. Isto fica explícito na mensagem do senhor Presidente da República: É inegável a nossa vocação para o turismo. Dispomos de todas as condições para cativar nossos visitantes – praias, florestas, montanhas, rios, festivais, culinária diferenciada, parques nacionais, cidades históricas e a tradicional hospitalidade brasileira, assim como, os equipamentos, as empresas, e a qualidade dos serviços já encontrados em muitas regiões do país. Receber bem é o traço marcante do nosso povo. A mistura de nossas raças gerou uma gente alegre, solidária, onde todos se encontram nas diferenças, num ambiente de convivência pacífica. Somos um país de todos. (PLANO NACIONAL DE TURISMO – 2003 A 2007, p. 3) Nessa parte do discurso, fica evidente o turismo entendido como uma potencialidade natural, quase como uma vocação “genética” para uma hospitalidade brasileira, elaborada historicamente segundo a índole integrativa do português e do escravo obediente “para cativar nossos visitantes”. Este discurso voltado para incrementar o turismo receptivo evidencia que “somos um país de todos” e passa a idéia de que não temos diferenças sociais ou qualquer tipo de racismo. A premissa básica que sustenta o entendimento desse turismo é a lógica do turismo receptivo que, por sinal, todos os patamares do trade turístico devem priorizar. Isso pode ser visto e confirmado quando a mensagem se refere à criação de novos empregos pelo turismo – trata-se somente de dados quantitativos que não refletem a realidade de regiões onde são crescentes os interesses privados devido à omissão do Estado. Mais adiante, é abordado novamente o turismo receptivo: Além dessas perspectivas, o turismo pode cumprir um perfil importante no equilíbrio da balança comercial, com o ingresso de novas divisas, por meio do aumento no fluxo de turistas estrangeiros e da atração de investimentos para a construção de equipamentos turísticos. (PLANO NACIONAL DE TURISMO – 2003 a 2007, p. 5) Para finalizar e endossar a prioridade ao turismo receptivo, a mensagem justifica a transformação da EMBRATUR em um órgão voltado ao marketing e à captação de eventos no exterior: Por todos esses motivos, já em campanha havíamos assumido o compromisso de criarmos o Ministério do Turismo e de profissionalizarmos a EMBRATUR, voltando o seu foco para a promoção, marketing e o apoio à comercialização do produto turístico brasileiro no mundo. (PLANO NACIONAL DE TURISMO – 2003 A 2007, p. 5) Como adequar essa proposta com a diminuição das desigualdades sociais? As políticas promovidas pelo Governo Federal, por meio da estrutura do Ministério do Turismo, não contempla a diminuição das desigualdades sociais, ao contrário, antes de tudo, têm aumentado a competitividade econômica de alguns investidores do setor. Esta é uma questão que deve ser colocada em evidência e revista pela Ministra Marta Suplicy, uma vez que os programas gerenciados pelo poder público priorizam os grandes empreendimentos turísticos estrangeiros que geralmente não têm beneficiado a coletividade. Verifica-se, atualmente, essa realidade em projetos e complexos efetivados de grupos como o Reta Atlântico (português), Pestana (português), Iberostar (espanhol), Amorim (português), Marriot (estadunidense), Accor (francês), Vila Galé (português) Studio Europa Engineering (italiano) e outros que contemplam principalmente o turismo de sol e mar. Com isso, é possível identificar dois processos: o primeiro atinge as comunidades nativas, pois esses empreendimentos, com a conivência do Estado, atuam na contramão de políticas de inclusão social, gerando tão somente subempregos. O segundo contempla a possibilidade de “ser” turista, pois há um verdadeiro “abismo” entre os empreendimentos e os turistas nacionais, uma vez que a estrutura é totalmente imprópria à realidade socioeconômica de parcela considerável da população. Assim, o território é formatado para aqueles que podem gastar: os estrangeiros. O Estado libera, para os estrangeiros, sem qualquer restrição ou ações de regulamentação consistentes, a aquisição de imóveis e empreendimentos no litoral brasileiro, sendo que esse procedimento trará, para a população local, um impacto cultural, econômico, político e social sem precedentes, em que o sentimento de exclusão aparecerá mesclado ao sentimento de um novo processo de colonização no contexto da globalização, assim, como querem os neoliberais: Esse processo de globalização do turismo atende aos interesses do capital internacional que, na falsa premissa de trazer emprego e desenvolvimento para as localidades, acaba ampliando a miséria e o desespero das populações nativas e regionais. Cria-se uma discriminação étnica que poderíamos chamar de um verdadeiro apartheid do turismo, estimulado pelos grandes empreendimentos nacionais e estrangeiros que isolam a população nativa do convívio para com o turista. (SANTOS FILHO, 2003, p.374) Aparelhados pelo Estado e seguindo a lógica da competitividade, os investidores têm aproveitado a abertura para investir em territórios que estão sendo internacionalizados por conta dos vultosos investimentos. Aproveita-se de nossos recursos e potencialidades paisagísticas e comprometem-se implicitamente somente com o fluxo de dinheiro e altos lucros. Ações sociais fazem parte tão somente de estratégias mercadológicas para o aumento da competitividade e manutenção da aparência que, de forma contrária, não ocorreriam. Nesse sentido, o discurso que busca o entendimento do fenômeno do turismo pelo viés puramente economicista limita e obscurece o caminho da razão para o entendimento do real e adere aos planejamentos em que o respeito à sustentabilidade está condicionado aos interesses da reprodução do Capital. O fato é que há uma estratificação que garante aos interesses do grande capital a prioridade no turista estrangeiro, tornando os programas e metas que contemplam o turismo interno em ações secundárias para uma política pública de turismo. Por isso, entendemos que, apesar dos esforços direcionados ao turismo brasileiro, o governo pecou por deixar a lógica neoliberal comandar e instrumentalizar os interesses das classes trabalhadoras. Pode-se destacar, assim, que o ethos da sandice esteve presente na Política Nacional de Turismo, principalmente quando destacou o turismo como o elemento-chave para o desenvolvimento (criação de empregos e ocupações diversas), conforme consta em suas metas: “criar condições de gerar 1.200.000 novos empregos e ocupações”. Essa ousadia em colocá-lo como o paladino do desenvolvimento, capaz de superar a pobreza e a miséria dos países capitalistas periféricos a todo custo, produz feridas iniciadas pelo desprezo à vida, em que os princípios societários aderem às raias da irracionalidade, apoiadas nos parâmetros das desgraças humanas.
2.3. GALHOFA [Do esp. Gallofa.], poss. do lat. med. galli offa, S. f.1. Gracejo, risota, risada.2.V. zombaria (FERREIRA, 1986) Compreendemos que a política nacional de turismo deve ser pautada por planos, programas e projetos que efetivamente possam mudar a estrutura turística nacional. Quando falamos em mudanças, enfatizamos que qualquer ação política, no campo do turismo, deve partir das características e do atendimento às necessidades especificas de cada região do país e estar integrada a outros setores. Caso contrário, teremos transformações qualitativas que não poderão ser efetivadas. Neste sentido, é motivo de gracejo o conteúdo do macro-programa de regionalização do turismo – Roteiros do Brasil. Ao abordar esse programa, apresentado no Plano Nacional de Turismo, verificamos que sua proposta central é a “estruturação, o ordenamento e a diversificação da oferta turística no país”. [5] O mesmo apresenta os seguintes objetivos: Promover o desenvolvimento e a desconcentração da atividade turística; apoiar o planejamento, a estruturação e o desenvolvimento das regiões turísticas; aumentar e diversificar produtos turísticos de qualidade, contemplando a pluralidade cultural e a diferença regional do País; possibilitar a inserção de novos destinos e roteiros turísticos para comercialização; fomentar a produção associada ao turismo, agregando valor à oferta turística e potencializando a competitividade dos produtos turísticos; potencializar os benefícios da atividade para as comunidades locais; integrar e dinamizar os arranjos produtivos do turismo; aumentar o tempo de permanência do turista nos destinos e roteiros turísticos; dinamizar as economias regionais. Ao analisarmos esses objetivos, devemos, em um primeiro momento, relembrar e traçar parâmetros relacionando com o Programa Nacional de Municipalização do Turismo, criado pela portaria nº 130 de 1994, do, então, Ministério da Indústria, Comércio e Turismo. Sua proposta principal era fomentar o turismo nos municípios, com os seguintes objetivos: conscientizar a sociedade para a importância do turismo; descentralizar ações de planejamento; estimular o fortalecimento das relações dos diferentes níveis do poder público com a iniciativa privada; e disponibilizar aos municípios brasileiros com potencial turístico, condições técnicas, organizacionais e gerenciais para o desenvolvimento do turismo (PNMT, s/d). É possível confirmar que as ações operacionais de capacitação do PNMT, divididas em três oficinas, não surtiram efeitos práticos por alguns motivos: (a) não se exigia a atuação de profissionais como monitores municipais; (b) a concepção do programa foi baseada em diretrizes da Organização Mundial do Turismo, compradas e adequadas para o Brasil: adotou-se a metodologia ZOPP (Planejamento de projetos orientados por objetivos). Transformadas em oficinas de capacitação, formadas por grupos em que os participantes recebem perguntas a serem analisadas com o objetivo de se chegar a um consenso. Essas oficinas são acompanhadas pelos moderadores que auxiliam os grupos com recomendações técnicas e esclarecimento de dúvidas, contudo os moderadores não precisam necessariamente ter formação ou atuação comprovada na área. Sua escolha foi justificada por ser um método de que todos participam e contribuem, eliminando as dispersões geradas por conflitos de ideias, à medida que os temas devem ter o consenso do grupo (SILVA JÚNIOR, 2004, p. 65). Assim, é necessário considerar que esta é uma metodologia excludente “por intimidar aqueles que possuem outra lógica, outra linguagem e tem interesses distintos da maioria dos técnicos presentes”. Esta questão justifica-se, pois qualquer crítica é abrandada pelos moderadores (RODRIGUES, 2003, p.97); (c) não executava as ações, mas baseavam-se tão somente na preparação das comunidades por meio das próprias oficinas, uma vez que o alcance pretendido (em ações e projetos) não chegava a contemplar os custos de investimentos, como aborda Silva Júnior (2004, p.79): “não se pode pensar em um programa eficaz sem considerar a restauração da capacidade do Estado de investir ou induzir investimentos privados”; (d) desconsiderava as características de políticas locais e as diferenças de interesses de classes, sobressaindo as vontades individualistas de empresários influentes e não necessariamente as da comunidade; e não possuíam uma lógica histórica, integrada com outros setores fundamentais para o desenvolvimento do turismo nas localidades. Foi, em última análise, um programa de caráter irracional que iludiu comunidades. Com a criação do Ministério em 2003, não houve uma proposta de reformatação e adequação do PNMT, segundo os moldes necessários para o desenvolvimento local. Movido por propostas de alguns Estados e projetos de roteiros apresentados ufanisticamente e sem uma estrutura de suporte consolidada[6], formulou-se outro programa, o de regionalização, conhecido também por Roteiros do Brasil[7]. É interessante observar que os objetivos traçados para este dependem do encaminhamento de um plano turístico em nível local primeiramente, o que não há em diversos municípios, uma vez que o PNMT não possibilitou outra realidade senão reuniões para a motivação dos “interessados” pelo turismo. Nesse sentido, compreendemos que cada região, está configurada, por um conjunto de elementos naturais a serviço da ação transformadora do homem, possuindo diferenciais que podem ser evidenciados e aproveitados turisticamente, mas são os municípios que, de forma articulada, podem induzir o desenvolvimento regional, ou seja, a regionalização vai depender da dinâmica, dos recursos e da interação entre municípios e suas instituições e características culturais. Isso pode ocorrer mediante políticas públicas, que promovam a elaboração e desenvolvimento de planos, contemplando o turismo e outros setores interligados. É justamente na lógica organizacional dos municípios com possíveis articulações que contemplem setores capazes de dinamizar a economia e valorizar intrinsecamente o patrimônio natural, histórico e cultural que a regionalização deve ser compreendida e estimulada. Abordando o setor do turismo, que geralmente não é capaz, por si só, de promover o desenvolvimento a longo prazo, verificamos que o macro programa do Governo Federal não possui a solidez necessária, uma vez que praticamente não há planos municipais de desenvolvimento integral do setor, baseados em políticas públicas consistentes. Portanto, partimos do pressuposto de que o planejamento com bases locais deve ser o eixo norteador para a regionalização. O estudo da região, a partir dos municípios que a integram, é interdisciplinar, sendo que o turismo e a geografia cultural, abordando as políticas, o planejamento, a área cultural e natural, as paisagens, a história cultural e a ecologia cultural, são de extrema importância para as propostas inter-municipais de desenvolvimento turístico. Para isso, é realizado o mapeamento do “arranjo e organização espacial de complexos de características relacionadas ou conectadas”, envolvendo os elementos naturais e a história, uma vez que “a história de qualquer povo evoca a sua fixação numa paisagem, seus problemas ecológicos e concomitantes culturais […]” (WAGNER; MIKESELL, 2003, p. 50). Trata-se de uma série de elementos que devem ser considerados e não tão somente o estabelecimento de roteiros ou circuitos. Salientamos esta questão, pois, na publicação do Ministério do Turismo apresentando os resultados e as perspectivas do turismo no Brasil, de junho de 2006, é ressaltado, no Item 3.4 do Capítulo I, o mapeamento realizado para “identificar as regiões e roteiros turísticos que devem ser objeto do ordenamento e estruturação territorial, gestão, qualificação e promoção, com visão de curto, médio e longo prazo” (Turismo no Brasil, 2007-2010). Segundo a publicação, em 2004, foram identificadas 219 regiões turísticas, envolvendo 3.203 municípios pelo programa de regionalização. Destas regiões, 134 apresentaram 451 roteiros turísticos, no Salão do Turismo chamado Roteiros do Brasil, que ocorreu em junho de 2005, na cidade de São Paulo. As regiões, representadas por municípios, apresentaram propostas de roteiros que, mesmo sendo interessantes, não oferecem a possibilidade, por si só, de promover a regionalização, como apontamos anteriormente. Um exemplo pontual é o programa envolvendo as Estradas Reais, do Estado de Minas Gerais, apresentado pela revista Exame (2007/2008) como “um dos maiores programas turísticos do país”, estabelecido em 1999, quando ainda estava em curso o PNMT. O Estado, no contexto neoliberal, delegou a responsabilidade de planejamento e gestão das rotas ao Instituto Estrada Real, criado pela Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais. Referenciados em mapas e na Internet, os caminhos Novo, Velho e dos Diamantes são mostrados como forma de desenvolvimento regional. Uma pesquisa que está sendo desenvolvida pelo Departamento de Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto irá apontar as distorções do programa e a capacidade do plano de marketing do instituto em moldar a aparência para ocultar a essência da questão[8]. Assim, não detalharemos aqui alguns problemas detectados nestes “eixos turísticos” como, por exemplo, o pouco embasamento histórico para a demarcação das rotas; a ênfase na comercialização de uma estrutura suporte que é deficiente; e os acordos políticos e econômicos que desvirtuaram o trajeto. Desejamos enfatizar, como exemplificação, que diversos municípios não possuem qualquer organização sólida em termos de planejamento e políticas públicas que contemplem o turismo para basear uma proposta de regionalização. Uma referência para os três caminhos é a cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, que carece de uma organização interna em diversos setores: não há regulamentação para a atuação de guias; não existe tratamento de esgoto; os distritos com potencialidades naturais nem sempre são contemplados por ações do poder público; e os vínculos entre prefeitura e universidade no setor de turismo, ainda são tênues. Pretendemos demonstrar, destacando Ouro Preto no contexto de um programa estadual, a irracionalidade de uma proposta de regionalização com a desorganização turística de localidades que compõem e configuram um espaço. E mais: ao Estado delegar a uma entidade representativa de interesses privados a responsabilidade pelo turismo, as ações desenvolvidas irão atender a interesses individualistas. Acrescentando-se que mesmo em municípios que precisam desenvolver um diagnóstico para a elaboração de um plano turístico, o Instituto Estrada Real oferece cursos de camareiras e garçons, ou seja, é repetição de ações de treinamento do PNMT em benefício dos empresários mais influentes. Com o afastamento do Estado, ou o que é pior, com a utilização de sua estrutura para fins de interesses privados, o turismo tem sido cada vez mais um instrumento de exclusão e concentração de renda do que de inclusão e valorização intrínseca do patrimônio. Com a ausência de políticas públicas que contemplem a coletividade, o turismo pode ser entendido “pela apropriação capitalista dos momentos de ócio individual, transformados em um imenso aparelho coletivo de enriquecimento privado” (OURIQUES, 2005, p.18). Nesse contexto, o programa Roteiros do Brasil torna-se motivo de galhofa, pois: (a) não considera a competitividade imposta pelo sistema capitalista, ao enfatizar a integração e cooperação de empresas ligadas direta ou indiretamente ao turismo; (b) anuncia mais dele mesmo, pois substancialmente não promove modificações substanciais em localidades; e (d) trabalha superficialmente a regionalização, deixando de considerar outros setores para o desenvolvimento do turismo e a dinâmica territorial que caracteriza e diferencia uma determinada região. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A política pública estabelecida pelos militares com o intuito principal de trabalhar e moldar uma imagem do país, que, por sinal, tem como reflexo o turismo sexual que está arraigado implicitamente na mente de muitos estrangeiros; a continuidade ou descontinuidade de ações que privilegiaram, desde 1966, os empreendimentos internacionais, criando um verdadeiro abismo entre meios receptivos e turistas nacionais; e os contínuos programas em que verbas são direcionadas a oficinas de treinamento e ao marketing são motivos concretos para duvidarmos da seriedade de ações do Estado para promover o turismo nacional. Apresentado o plano de turismo 2007-2010 pela Ministra Marta Suplicy, verificamos que a proposta principal de desenvolver o turismo doméstico deve estar contemplada nos programas que, até o presente momento, não tiveram reformulações para reordenar o plano. Ressaltamos, ainda, que iniciamos a análise desse plano, contemplando suas propostas, objetivos e diretrizes, uma vez que a lógica irracional da internacionalização territorial, dos interesses de corporações e das políticas subservientes a estes devem ser quebradas por ações políticas firmes que vão contra a lógica exploratória do sistema ao qual o turismo brasileiro está subordinado. REFERÊNCIAS ANTUNES, Ricardo. A desertificação neoliberal no Brasil: Collor, FHC e Lula. Campinas: Autores Associados, 2004. ANDERSON, Perry. Balanço do Neoliberalismo. In: SADER, Emir et al. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 4.ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. A REDESCOBERTA da rota do ouro. Anuário Exame 2007 – 2008. São Paulo, p. 158, abr. 2007. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999. BRASIL. Ministério do Turismo. Turismo no Brasil 2007 – 2010. Brasília, jun 2006. CAMINHA, Pero Vaz de. Carta a El Rei D. Manuel. São Paulo: Dominus, 1963 CHEVALLIER, Jean-Jacques. As grandes obras políticas: de Maquiavel a nossos dias. 3.ed. Rio de Janeiro: Agir, 1982. CORIOLANO, Luzia Neide M. Teixeira; MELLO E SILVA, Sylvio C. Bandeira de. Turismo e geografia: abordagens críticas. Fortaleza: Ed UECE, 2005. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio. 2.ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro, 1986. GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1985. GEISEL, Ernesto. Discursos. Brasília: Assessoria de imprensa da presidência da república. Volume II, 1976. MACHADO, Luiz Antônio. A sociabilidade excludente. In: SADER, Emir et al. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o estado democrático. 4.ed.Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira. (1968 – 1978). São Paulo: Global editora e distribuidora LTDA. 1980. MARTONI, Rodrigo Meira. Corporações Turísticas: ensaio sobre suas bases sustentáveis. In: ROCHA, Jefferson Marçal da. Turismo, economia e gestão. Caxias do Sul: EDUSC, 2006. MINISTERIO DO TURISMO. Programa Roteiros do Brasil. Disponível em: http://institucional.turismo.gov.br/. Acesso em 20 de junho de 2007 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das letras, 1995. RODRIGUES, Carmen Lúcia. Na safra do turismo. In: RODRIGUES, Adyr Balastreri et. al. Ecoturismo no Brasil: possibilidades e limites. São Paulo: Contexto, 2003. SILVA JÚNIOR, José Henrique. A política interna de turismo no Brasil (1992-2002). Belo Horizonte: FACE-FUMEC, 2004 SANTOS FILHO, João. O Turismo em nossa latinidade: uma nova forma de colonização. In BAHL et al. Turismo: enfoques teóricos e práticos. São Paulo: Roca, 2003. SILVEIRA, Joaquim Xavier da. Turismo prioridade Nacional. Rio de Janeiro: Distribuidora Record. s/d SOUZA, Renato Santos. Entendendo a questão ambiental. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2000. WAGNER, Philip; MIKESELL, Marvin. Os temas da Geografia Cultural. In CORRÊA et al. Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
[1] Bacharel em Turismo pelo Centro Universitário Ibero-Americano de São Paulo (Unibero) e bacharel em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Educação: História e Filosofia da Educação pela PUC/SP. É professor do quadro efetivo da Universidade Estadual de Maringá, PR – UEM. Autor do livro “Ontologia do turismo: estudo de suas causas primeiras” publicado pela EDUSC. [2] Bacharel em Turismo pela Faculdade Nobel de Maringá, PR. Mestre em Geografia, Meio Ambiente e Desenvolvimento pela Universidade Estadual de Londrina, PR – UEL. Professor do quadro efetivo do Departamento de Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto, MG – UFOP. [3] O Pós-modernismo, enquanto conceito do momento, busca fragmentar a realidade para entendê-la em suas várias especificidades e em um processo de desconstrução, atingindo o pensamento histórico e obedecendo à lógica do pensamento antitotalizante, rejeitando as grandes interpretações. Isso ocasiona um apoio à não-mudança do modo de produção capitalista, auxiliando na criação de mecanismos que solidificam seu status quo. Portanto, a pós-modernidade pressupõe ultrapassar o capitalismo não enquanto sistema econômico, mas, sim, atender o princípio básico da expansão máxima da produção, circulação da mercadoria e tecnologia, estendendo o acesso da mesma aos vários extratos sociais, na perspectiva de ampliar o consumismo e, com isso, minimizar a exploração capitalista. Busca aumentar os horizontes da ampliação do capital, congelando o cotidiano revolucionário da realidade e formatando a linguagem do “pós” como presente em todas as instâncias da sociedade. [4]Vamos considerar governos populistas aqueles que governaram entre 1930 a 1964 e não esquecer, apesar de criticável, embora importante para ao conceito de populismo, o cientista político e professor Otávio Ianni, que se tornou uma espécie de parâmetro no mundo acadêmico depois de publicar O colapso do populismo no Brasil – estudo que marcou a Ciência Política e transformou-se numa espécie de “leme” que influenciou as novas gerações acadêmicas e de políticos de esquerda na América Latina. [5] http://institucional.turismo.gov.br/ [6] Apresentamos como exemplo a inauguração, em 2003, da “Rota dos Tropeiros” no Estado do Paraná com um pomposo evento na Fazenda Capão Alto em Castro, seguindo de um jantar no moinho da Castrolanda. Estiveram presentes o ex-ministro Mares Guia e diversas figuras políticas do país e do Estado. Na verdade, foi inaugurado um folder, pois não havia até o momento um trabalho efetivamente implantado para referenciar o caminho e sua estrutura suporte, mesmo com pesquisas de estudiosos da região como Paulo Henrique Schimidlin. [7] Trata-se de um exemplo de descontinuidade administrativa, sem um estudo aprofundado dos aspectos positivos, negativos e fragilidades do PNMT. [8] Projeto de pesquisa intitulado “Rotas turísticas de integração: identificação e planejamento”, cadastrado no programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica da Universidade Federal de Ouro Preto. |