Margarete Hülsendeger
publicado em 28/08/2007
Imaginem a situação: em um cruzamento, um carro, simplesmente ignorando a sinalização, atravessa a preferencial. Nesse momento um outro veículo está passando por esse mesmo cruzamento. Ouvem-se ruídos de freios e por pouco, muito pouco mesmo, não ocorre um terrível e trágico acidente.
O que há de inusitado ou novo nessa cena poderão estar-se perguntando? Afinal, é o tipo de situação que, infelizmente, acontece rotineiramente nas grandes cidades. Para responder a essa questão é necessário prolongar um pouco mais essa história. Então, continuem imaginando.
O motorista “quase vítima” desce do veículo e, com o rosto afogueado e tenso, avança em direção ao motorista imprudente. O descontrole entre os dois é total. Palavras e gestos violentos são trocados. Não há limites para os xingamentos. A ofensa de um é replicada pelo o outro e se a polícia não chega a tempo, provavelmente veríamos esses dois cidadãos envolvidos em uma briga violenta e de conseqüências imprevisíveis.
O que foi isso? O que gerou tamanha violência entre pessoas que nunca antes se haviam visto? Será que se odiavam sem mesmo se conhecer? E não vamos cair na armadilha de acreditar que esse tipo de situação só ocorre com pessoas desequilibradas, futuros hóspedes de clinicas psiquiátricas. Não. Com certeza, não.
Na verdade, é assim que, em maior ou menor grau, ficamos quando estamos dominados pela raiva. Simplesmente, perdemos o controle das nossas ações e palavras. Em outros termos, nos tornamos um trem desgovernado. Talvez seja por isso que os desenhos animados, quando querem mostrar um dos personagens tomado por essa emoção, o fazem soltando fumaça pelos olhos e ouvidos. Definitivamente, essa é a representação caricatural de uma panela de pressão pronta para explodir. Para quem vê é muito engraçado, mas quem já foi assaltado por tal emoção sabe que não tem graça alguma; ao contrário, tudo assume proporções gigantescas e, na maioria das vezes, acaba se voltando contra o próprio raivoso.
É claro que alguns dirão que a raiva é uma forma saudável de defesa; existe, inclusive, uma expressão utilizada para indicar essa emoção: “a raiva dos justos”. Em uma passagem do Novo Testamento, Jesus Cristo, dominado por esse tipo de raiva, não expulsou os vendilhões do templo? E, francamente, se Ele pode, por que nós não? Diante de uma situação injusta esse sentimento pode, por exemplo, nos fazer reagir ajudando-nos a vencer a apatia e a inércia. Afinal, se aceitamos tudo de maneira passiva, sem nunca questionarmos, podemos estar abrindo mão de nossos direitos, tornando-nos, quem sabe, marionetes em mãos inescrupulosas.
No entanto, o que preocupa não é essa raiva esporádica, nascida de um sentimento de injustiça. O que preocupa (ou deveria preocupar) é a raiva latente, sempre presente, pronta para eclodir por qualquer motivo. É essa raiva que nos faz agir de forma irracional. É ela que nos faz enxergar só um lado da questão (de qualquer questão, por mais boba que seja), tornando-nos intransigentes e irascíveis. Essa é a raiva que devemos temer nos outros e, principalmente, em nós mesmos.
A raiva que aqui chamo de latente está presente no menor de nossos atos, mesmo quando acreditamos estar livre dela. É quando sentimos, por exemplo, que à menor contrariedade, o mundo, antes belo e maravilhoso, passa a ser um lugar terrível, uma verdadeira ameaça. Esse tipo de raiva muitas vezes não se manifesta de forma violenta, como no caso do “quase acidente” de trânsito; ela, na verdade, é invisível para todos, inclusive para aquele que a sente. É por isso que, a essa hora, estou quase conseguindo ouvir os seus pensamentos: “Que conversa é essa, não existe pessoa mais calma e tranqüila do que eu!”. Será verdade? Será?
E não sendo, o que devemos fazer quando percebemos que, a cada dia, nos tornamos mais e mais raivosos?
Lamento trazê-lo até aqui para apenas responder: não sei, não tenho as respostas, e muito menos soluções; afinal, nem psiquiatra sou. Sem contar que esse não é o tipo de coisa que possa ser respondido como se estivéssemos resolvendo um cálculo matemático. Aqui, nem sempre 2 + 2 é igual a 4.
No entanto, apenas como forma de ajudar (não de resolver) podemos começar nos perguntando: “quando comecei a sentir que o mundo inteiro estava contra mim?”, “o que dispara esse tipo de reação? Coisas sérias ou nem tanto?”, “do que tenho raiva?”, “a minha raiva está voltada contra mim ou contra os outros?”.
Pense. Só pense sobre isso. O simples pensar já nos obriga a parar o que estamos fazendo e nos possibilita uma reflexão sobre a forma como estamos dirigindo as nossas vidas. Afinal, se você anda sentindo muita raiva e, muitas vezes, nem sabe porque ou do quê, é porque alguma coisa não deve estar muito certa na sua vida. Será que isso não valeria uma pausa na sua rotina? Pense, também, que um dos órgãos do corpo mais sensíveis a explosões de raiva é o coração; será que ele não merece ser melhor tratado?
Sei que está parecendo coisa que encontramos naqueles livros de auto-ajuda, mas, sinceramente, não é. São questões que todos devemos nos colocar, nem que seja de vez em quando. Estou propondo apenas um exercício, não encare como uma obrigação, ou pior, uma ofensa. Não fique com raiva deste texto e, por favor, não fique com raiva de mim.
Reconheço que, nos dias de hoje, é muito difícil não sentir raiva. Tem tanta coisa horrível acontecendo, tanta coisa que não conseguimos resolver: injustiças de todos os tipos e para todos os gostos, impunidade, roubalheira e muito mais que não vale a pena mencionar. A cada dia nos sentimos mais impotentes e solitários. Não sabemos a quem recorrer, duvidamos de nós mesmos, encaramos a tudo e a todos como uma ameaça em potencial.
E quando menos esperamos, esbarramos em alguém que resolve nos contrariar e que tem (só para piorar as coisas!) a coragem de nos dizer que estamos errados. É o fim! Não aceitamos, não queremos sequer ouvir, nos rebelamos e, quando nos damos, conta já estamos sentindo o coração bater forte, a cabeça latejar, uma quantidade imensa de sangue fluir para o rosto, tornando-o vermelho, inchado e irreconhecível até para os mais íntimos, e o cérebro enviando sinais cada vez mais rápidos para todo o corpo com uma mensagem bem clara: ataque, não deixe pedra sobre pedra!
E, assim como os motoristas do início dessa história, lá vamos nós nos envolver em alguma briga ou discussão, muitas vezes sem a menor importância. É um circulo vicioso, difícil de escapar. Mas, como se dizia antigamente, “cada um sabe onde lhe aperta o sapato”; em outras palavras, se está tudo bem para você, ótimo, continue assim! A mim, só me resta lhe desejar um bom dia, esperando que você termine de ler este texto sem sentir muita raiva. Afinal, acredite, o mundo é belo e a vida, apesar dos problemas, merece ser vivida, de preferência sem sentir MUITA RAIVA.