Cultura

Jogo e biografema em Patty Diphusa, de Almodóvar

Rodrigo da Costa Araujo

publicado em 28/02/2007

www.partes.com.br/cultura/almodovar02.asp

 

“Um texto pode sempre ler outro, e assim por diante, até o fim dos textos”.

Gerard Genette. Palimpsestos.

Rodrigo da Costa Araujo é professor de Literatura da FAFIMA – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé. Mestrando em Ciência da Arte pela UFF-Universidade Federal Fluminense.
::contato com o auto

Patty Diphusa e outros textos (1992), livro escrito pelo cineasta Pedro Almodóvar revela o tom erótico, vertiginoso e transgressor de suas películas. De cunho autobiográfico e escrito nos anos oitenta, os traços da escritura de Almodóvar podem ser vistos, também, em suas cenas transbordantes de desejo e do aveludado vermelho da paixão. Uma extrema mise em scène do desejo. Afinal de contas tudo remete ao céu vermelho “e ausente de estrelas de Madri” – cenário preferido de seus filmes. “Sempre encontrei uma paisagem perfeita e uma fauna incorreta e ideal para cada um dos meus filmes”. (ALMODÓVAR, 1992, p.17).

Tudo, semelhante A Lei do Desejo, é escrito feito recortes em palimpsestos[1] ou pequenos “fragmentos do discurso amoroso” – “Geralmente você conta histórias que já viu, mas alterando-as”. (1992, p.173).

Almodóvar, ficcionalizado no livro, conversa com Patty (totalmente “difusa”, “mulher sozinha e evasiva”) (1992, p.91) e confessa no prólogo do livro: “ Através de Patty eu (…) aproveito para me exercitar na escrita, atividade pela qual sempre senti inclinação” (1992, p.9-10).

Patty Diphusa, como muitos personagens das narrativas transgressoras do cineasta, é vertiginosa  e semelhante ao adjetivo “difuso” que a acompanha no título do livro. “ O sinal de nossos tempos é a vertiginosidade, a atividade frenética. E você é uma garota típica do nosso tempo”. (1992, p.98). A narrativa autobiográfica, verborrágica e “obtusa” é recortada com memórias de Patty em pequenos flahes cinematográficos em primeira pessoa.

Mulher insaciável, erótica e estrela internacional de fotonovela pornô, a protagonista recebe um convite de um diretor de uma revista pós-moderna para relatar suas memórias. Semelhante a Almodóvar, Patty é do signo de libra, como Brigitte Bardô e Oscar Wilde – espelho, “iconografia feminina” (MELO, 1996, p.235) e inspiração para as mulheres da poética almodovariana.

Recebeu o estímulo, o jogo do simulacro, o discurso do narrador pós-moderno e irônico dos anos 80, tempo em que a vida, para se questionar o contexto repressor, “era festas, sexo, tudo era alegria e inconsciência”. (1992, p.95). Por outro lado, o mundo da fama e os meios de comunicação “transformou ela numa pessoa triste e melancólica” que “não está disposta a tomar drogas para superar isso”. (1992, p.96). Contraditória e pós-moderna prefere , muitas vezes, “ o fastio, a depressão, a reflexão, o tédio, o niilismo, a reserva” (1992, p,96) semelhante aos decadentistas do fim do século, feito Oscar Wilde.

A escritura, como também os enredos que envolvem a filmografia do cineasta espanhol “não têm nada a dizer e não querem dizer nada” (1996.p.96). Revelam de certa forma, o contexto em que estão inseridos, os extremos do comportamento humano, “a inelutável necessidade que todos têm de demonstrar que são divinos”. (1996, p.96).

Num diálogo com seu autor, espécie de metanarrativa ou biografemas[2] (no sentido barthesiano), Patty pergunta por que não dorme, e ela mesma confessa: “ Há pessoas que em estado de catalepsia fazem coisas muito interessantes. Ou pessoas que aproveitam o fato de serem sonâmbulas para se divertir”. (1992, p.97-98).“Para ela, tudo é noite, suas aventuras, quase sempre relacionadas com todas as variações sexuais imagináveis e com todo tipo de drogas, servem-lhe para refletir a seu modo, sobre a condição humana”. (contracapa do livro). Semelhante a Kika, do cineasta, a personagem vive no mundo da transgressão, do simulacro, da fantasia.

Nesse jogo,- diálogo metalinguístico entre criador e criatura, Pedro Almodóvar e Patty, misto de real e imaginário – a estrutura dissimulada que embaralha ficção e a realidade termina com a seguinte indagação: “ Pedro, acho que depois desta entrevista continuo sem saber nada de você” e Almodóvar responde: Eu, no entanto, já sabia tudo de você.” (1992, p.101).

Aos leitores, nesse contexto, restam indagações sobre até onde a ficção de cunho naturalista e verborrágica pode chegar, porque caso contrário, receberão a seguinte declaração: “ Odeio todo esse bando de leitores ineptos que ousam identificar-se comigo e que celebram tudo o que eu faço e digo”. (p. 93-94). “Quando faço alguma coisa, é para ser ÚNICA. Não quero que ninguém compreendas, muito menos que me imitem. Não há nada mais desesperador do que ouvir o eco de suas próprias palavras”. (1992, p. 94).

Nesse fragmento é possível perceber uma característica forte da poética do cineasta – a ironia corrosiva e feroz do discurso contemporâneo. O mesmo pode ser percebido nos ensaios que acompanham essas histórias, principalmente, no texto “Conselhos para se chegar a ser um cineasta de fama internacional”.

Essa ironia e a impressão de zombar de tudo fazem de Patty Diphusa um elemento encadeador de sua escritura – instiga uma metalinguagem, um tom coloquial, os constantes diálogos com o leitor/espectador. “… Com os anos, aprendi certas coisas, como por exemplo que não devemos levar os outros a sério, mas nos defender na base da ironia. Foi minha ironia que fez muitas moças do interior tornarem-se modernas e agora estarem felizes em Madri” (1992, p.160)

Com seu olhar de câmera cinematográfica e sempre à deriva, Patty Diphusa foca os objetos do gosto clichê, do kitsch, do lugar comum próprios da vida das mulheres de Madri. A sua autobiografia irônica e escrita em fragmentos, semelhante a um espelho de Pedro confirma que : “ A Glória é aquilo que obriga você a se repetir capítulo após capítulo”. ( 1992, p. 93).

Simulacro do simulacro, discurso vazio e resultado do próprio sucesso midiático que fez dela mais uma imagem clichê, a protagonista percebe-se como mito do mundo banalizado e confessa: “ Quem sou eu para impor o mau gosto e a grosseria? (…) Ao meu ver refletida nos outros senti desprezo por MIM MESMA. E não gosto. Por que tive de me converter num MITO? Minha única ambição era ganhar dinheiro e ser feliz, e no entanto, da noite para o dia, simplesmente por narrar minhas coisas com incrível encanto e inteligência,  vejo-me transformada num modelo a ser imitado, quando deveria ser ao contrário. O que está acontecendo na Espanha?” (1992, p.94-95).

Frutos da “Sociedade do Espetáculo”, os personagens da poética almodovariana procuram sua identidade, suas marcas ou retratos esfacelados na multidão contemporânea e evasiva. Percebem-se, de algum jeito, como identidades fragmentadas e dispersas no mundo que tenta formatar as pessoas, excluindo-as ou inserindo-as no jogo capitalista e desigual.

De qualquer forma, chegando de perto feito uma câmera lenta, a mulher na poética almodovariana inscreve-se “no cotidiano heroico de suas aventuras para além das fronteiras ibéricas” (GARGIULO, 2003, p.173). Como Patty, elas transformam, segundo a pesquisadora, questões fundamentais como amor, maternidade, opressão, paternidade, vingança, paixão, ciúme, violência e solidariedade”. Essas “chicas” (e muitos “chicos”) más, fizeram de “Mulheres à beira de um ataque de nervos(1988) o grito que interpretou e confrontou as constâncias, demasiadamente humanas, entre homens e mulheres.

Ler ou ver Almodóvar é enveredar por caminhos da transgressão, deixar o olho procurar nesses fragmentos à deriva, o detalhe mais sublime que a câmera não filmou ou o que as palavras não conseguem capturar. Em Almodóvar, por trás das palavras ou imagens sempre existem mais ideias, mais metáforas, o sentido constrói-se articulando e articulado sobre “lobvie et l’obtus”. Exigem, desse jeito, um leitor com os sentidos atentos e uma percepção, além de sensível, extremamente aguçada.

Ler e perceber, som e visão, fala e escrita engendram na poética de Almodóvar um complexa fusão, combinando linguagens, estabelecendo relações semiológicas e intertextuais. Por isso ao ler este livro, mergulhamos como em seus filmes, no mundo da leitura fotográfica, espaço aliado a um mundo mais veloz e com novo ritmo. É um apelo visual à sensação, onde o instantâneo de seus filmes combinam vários sentidos e signos. A própria protagonista que intitula o livro, feito Carmem Maura em seus filmes, incorpora a “vertiginosidade e a atividade frenética. É uma garota típica de nosso tempo” (1992. p.98).

Suas pistas, seus silêncios e marcas absorvem do leitor a velocidade como característica básica de leitura. Dela, constroi-se uma leitura flash, rápida, veloz. Leitura de mensagem imediata e ardente do ver – como o colorido exótico e kitsch da capa do livro. Ler e ver percorrem, nesse sentido,  instâncias para instigar uma percepção deslocada, um olhar que procura o que Barthes classificou como  sentido deposto[3] ( em oposição ao sentido posto).

As imagens em Almodóvar, tanto no livro, como nos filmes centram-se, assim, no sentido retirado (deposto), fogem ao lugar comum dos significados clichês ou ao sentido posto. Em sua poética, o mundo deve ser percebido como plural, fragmentos polifônicos e significativos, colagens e pastiches da vida. Ambos operam com o conceito de estranhamento valorizados pelos formalistas russos (Maikovski, Chklovki e outros).

Seus detalhes, seus diálogos e marcas absorvem do leitor a velocidade como característica básica de leitura. Dela, faz-se uma leitura flash, rápida, veloz. Leitura e transgressão do ver – como o colorido exótico e kitsch da capa dessa edição. A capa verde com diversos batons espalhados sugerem o mundo erótico e do disfarce, da dissimulação, da maquiagem da protagonista, diversos objetos fálicos que, de alguma forma, ajudam a traçar o desejo como característica de suas personagens. Uma biografia romanceada de Almodóvar “que não ousa dizer o seu nome” (BARTHES, 1975, p.64)

Assim, misturando criador e criatura, os diálogos irônicos e mergulhados na poética do pós-modernismo e sem que o autor tenha planejado isso, o livro pode ser lido como fragmentos de um discurso amoroso (ou perverso?) ou eróticos biografemas barthesianos para compor um retrato do famoso cineasta, flahes de sua trajetória pessoal e profissional.

Barthes, segundo CULLER, (1988, p.100). “promotor do Marquês de Sade”, e aqui também, podendo ser considerado Almodóvar, “trabalhou para criar um clima intelectual sintonizado com a transgressão”. Ao desvelar as figuras de um discurso negligenciado, Barthes nos surpreende, nesses seus Fragmentos, ao tornar o amor, em suas formas mais absurdas e sentimentais, um objeto de interesse.

Tudo tecido ao sabor (ou dissabor?) nos limites extremos da representação – costuram-se, sempre, alegorias da falta, da desordem, da caoticidade e do terrificante, bem como as forças do erotismo e da sensualidade parecem irromper e precipitar, como em sua filmografia, um eterno deslizamento dos significantes, uma labiríntica forma de narrar.

Enfim, palimpsestos, duplos disfarces, vultos para os vazios, jogo dos signos vazados e registros difusos de uma escritura singular. Patty e Pedro, dupla persona, mascaramentos, eixo de coisas parecidas, afinidades eletivas, eternas suspeitas. Jogo, rasuras.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ALMODÓVAR, Pedro. Patty Diphusa e outros textos. Trad. Manica Stahel. São Paulo. Martins Fontes, 1992.

BARTHES, Roland. Le Plaisir du Texte. Paris: Seuil.1973

______. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris: Seuil, 1975.

______. Fragments d’un discours amoureaux. Paris: Seiul, 1977.

______. S/Z. Paris: Seiul, 1970

______. L’obvie et l’obtus. Essais Critiques III. Paris: Seiul, 1982.

______. Sobre Racine. Trad. Antonio C. Viana. Porto Alegre.L&PM, 1987.

______. Escritores, Intelectuais, Professores e outros ensaios. Lisboa: Ed. Presença, 1974.

BRAIT, Beth. Ironia em Perspectiva Polifônica. Campinas. Ed Campinas, 1996.

CULLER, Jonathan. As Idéias de Barthes. São Paulo: Cultrix, USP, 1988.

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo.. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

GARGIULO, Adriana Riva. Ata-me, que eu te devoro! Considerações a propósito do feminino na arte de Pedro Almodóvar. Dissertação de Mestrado em Ciência da Arte, UFF, 2004

GENETTE, Gérard. Palimpsestes. París. Editions du Seuil, 1982.

HOLGUÍN, Antônio. Pedro Almodóvar.  Madri.Cátedra, 1999.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós-modernismo. Trad: Ricardo Cruz. RJ: Imago, 1991.

MELO, Andréa M. B. de. A Presença Feminina no Cinema de Almodóvar. In: Urdiduras de Sigilos. Ensaios sobre o Cinema de Almodóvar. Eduardo P. Cañizal. (org.). São Paulo: ANNABLUME, 1996.

PERRONE-MOISÉS, Leyla. Barthes: o saber com sabor. Brasiliense. São Paulo, 1983.

[1]. A imagem do palimpsesto foi utilizada pela crítica literária pós-estruturalista para colocar em primeiro plano o fato de que todo ato de escrever ocorre na presença de outros – textos falam através de outros textos. Os Palimpsestos subvertem o conceito do autor como única fonte geradora de sua obra, assim, o significado da obra de Almodóvar é atribuído, segundo esse olhar, como a uma cadeia interminável de significações. Nesse caso, nossa leitura  do livro em questão será feita segundo um olhar compósito, texto poroso e transtextual segundo Gerard Genette.

[2] O biografema, segundo Barthes, nunca é uma verdade objetiva: “O biografema nada mais é do que anammese factícia: a que eu empresto ao autor que amo”. A biografemática – “ciência” do biografema – teria como objeto pormenores isolados, que comporiam uma biografia descontínua; essa “biografia” diferiria da biografia-destino, onde tudo se liga, fazendo sentido. O biografema é o detalhe insignificante, fosco; a narrativa e a personagem no grau zero, meras virtualidades de significação. Por seu aspecto sensual, o biografema convida o leitor a fantasmar; a compor, com esses fragmentos, um outro texto que é, ao mesmo tempo, do autor amado e dele mesmo – leitor. (PERRONE-MOISÉS, 1983, p.15)

[3] Barthes ao analisar Racine, no Prefácio fala do sentido posto e no sentido deposto.

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