Cultura música Terceira Idade Terceira Idade

“É bonito ver passar o tempo” nas canções de Chico Buarque

“É bonito ver passar o tempo” nas canções de Chico Buarque

Anna Cruz de Araújo Pereira da Silva*

Francisco Buarque de Hollanda nasceu no dia 19 de junho de 1944, no Rio de Janeiro, filho do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista amadora Maria Amélia Cesário Alvim. Desde cedo, o agora Chico, criou “operetas” que eram cantadas em conjunto com as irmãs mais novas, Ana, Cristina e Pii. Mais tarde, Chico participou com destaque dos grandes festivais de música popular dos anos 60, compôs para teatro e cinema, escreveu peças teatrais, poemas, romances e inscreveu seu nome na história da cultura brasileira como um dos mais expressivos e talentosos artistas de todos os tempos.
Este artigo coleta algumas passagens do cancioneiro do músico para traçar uma linha do tempo. Quando o Chico dos vinte anos se transformou no homem de sessenta, o “tempo passou na janela” sem que a Carolina da canção notasse, mas algo mudou na forma de sentir e cantar o tempo, a idade, as rugas ao redor da boca.
Em 1966, um moço de apenas vinte e dois anos entoava aquele que seria seu sucesso retumbante, “A Banda”. A música conta da alegria coletiva e contagiante diante da bandinha que passava falando de coisas de amor. Naquela ocasião, até “o velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou que ainda era moço pra sair no terraço e dançou”. Perceba-se a inadequação de um velho (fraco) dançando (“pensou que ainda era moço”).
Dois anos depois, em 1968, nos dolentes versos de “O velho”, Chico descreve a amargura de alguém que se despede da vida sem ganhos: “o velho sem conselhos, de joelhos, de partida, carrega com certeza todo o peso da sua vida. Então eu lhe pergunto pelo amor. A vida inteira diz que se guardou do carnaval, da brincadeira que ele não brincou”. Novamente, é a velhice, ao menos aos olhos joviais, paradoxalmente, tão pesada e tão vazia. “Me diga agora o que é que eu digo ao povo, o que é que tem de novo pra deixar? – Nada, só a caminhada longa pra nenhum lugar” (“O velho”, 1968).
Aquele velho que, perguntado sobre o amor, responde em negativas, parece ressurgir revigorado na “Valsinha” (1970), composição de Chico e Vinícius de Moraes. A cadência da valsa e a história de um casal distanciado pelo tempo remetem-nos para um amor maduro. Naquele dia, “ele chegou tão diferente do seu jeito de sempre chegar” e “então ela se fez bonita como há muito tempo não queria ousar. Com o seu vestido decotado cheirando a guardado de tanto esperar. Depois os dois deram-se os braços como há muito tempo não se usava dar e cheios de ternura e graça foram para a praça e começaram a se abraçar”. Finalmente, um sopro de esperança na maturidade.
A velhice amorosa previsível dos “pequenos burgueses” é cantada na divertida “O casamento dos pequenos burgueses” (1977-1978). Depois de uma vida de complicações, “ela esquenta a papa do neto e ele quase que fez fortuna. Vão viver sobre o mesmo teto até que a morte os uma”. Mal fadado e restrito futuro este de esquentar papas dos netos.
O envolvimento amoroso reaparece em “Geni e o Zepelim” (1977-1978). Geni, sendo um “poço de bondade”, dava-se generosamente a “detentos”, “loucas”, “lazarentos” e “também vai amiúde com os velhinhos sem saúde e as viúvas sem porvir”. Vale reparar no elenco de amantes: estão na mesma devassidão detentos, cegos, retirantes, loucas, lazarentos, moleques do internato, “velhinhos sem saúde” e “viúvas sem porvir”.
Na década de 80, sobe ao palco um Chico de quarenta anos inquieto com o tempo. É o momento das grandes e irrespondíveis perguntas feitas em “O circo místico” (1982): “Não, não sei se é um truque banal, se um invisível cordão sustenta a vida real (…) qual, não sei se é nova ilusão se após o salto mortal existe outra encarnação”. E em “Vida” (1980), as reflexões de um olhar em retrospecto: “Vida, minha vida, olha o que é que eu fiz: verti minha vida nos cantos, na pia, na casa dos homens de vida vadia, mas, vida, ali, quem sabe, eu fui feliz (…) luz, quero luz, sei que além das cortinas são palcos azuis de infinitas cortinas com palcos atrás”. Chico incomoda-se com a nostalgia, imprópria para quem ainda é jovem: “ai, saudade, inda sou moço, aquele poço não tem fundo” (“Tanta saudade”, 1983, com Djavan).
As reflexões sobre o tempo passado, não satisfatoriamente vivido, são presentes ainda na belíssima “Um tempo que passou” (1983, com Sérgio Godinho): “vou uma vez mais correr atrás de todo o tempo perdido, quem sabe está guardado num relógio escondido por quem nem avalia o tempo que tem (…) ou dorme num arquivo a vida que eu não gozei, eu não respirei, eu não existia, mas eu estava vivo, vivo, vivo. O tempo escorreu, o tempo era meu, e apenas queria haver de volta cada minuto que passou sem mim”.
Diverso – e mais positivo – é o enfoque de “O corsário do rei” (1985, com Edu Lobo): “é bonito ver passar o tempo, ele já foi meu, ele já foi meu, já usou meu corpo, ele abusou de mim (..) eu já tive vinte anos, agora quero mais. Tenho sete mares, mortes mais de cem, já rendi uma cidade, agora eu quero bem”. É de notar que aqui, ao contrário de “Um tempo que passou”, o tempo não consome e sim agrega.
No final dos anos 80, Chico lança o disco “Francisco”, no qual a faixa “O velho Francisco” (1987) chama atenção. Embora não haja razão para tomá-la como autobiográfica, a canção expõe o arrebatador efeito do tempo mesmo sobre um “campeão”: “Já gozei de boa vida, tinha até bangalô, cobertor, comida, roupa lavada; vida veio e me levou (…) Quem me vê, vê nem bagaço do que viu quem me enfrentou: campeão do mundo em queda de braço, vida veio e me levou”.
Mais autobiográfico é o disco “Paratodos”, nos anos 90. Além da canção homônima, “multigeracional” (“o meu pai era paulista, meu avô pernambucano, o meu bisavó mineiro, meu tataravó baiano, vou na estrada há muitos anos, sou um artista brasileiro”, “Paratodos”, 1993), Chico fala da influência do tempo na vida e na obra do artista: “Vejo o tempo obrar a sua arte tendo o mesmo artista como tela. Modelando o artista ao seu feitio o tempo com seu lápis impreciso põe-lhe rugas ao redor da boca como contrapesos de um sorriso (…) O tempo arrebata-lhe a garganta: o velho cantor subindo ao palco apenas abre a voz, e o tempo canta”(“Tempo e artista”, 1993). Neste espetáculo, de parceria entre o tempo e o artista, o tempo alcançará a glória e o artista, o infinito.
Os anos, agora aliados e mestres, mostram ao Chico senhor que o artista quando moço não prometia ser aquilo que ele, o tempo, tornou: “O retrato do artista quando moço não é promissora, cândida pintura: é a figura do larápio rastaqüera numa foto que não era para capa” (“A foto da capa”, 1993). A foto em questão era uma “chapa” policial, fotografia tirada quando Chico, ainda menor, aos dezessete anos, foi detido por ter furtado um carro, em uma “brincadeira” da época.
Nos anos 2000, o Chico sereno observa a ação e a passagem do tempo nas coisas e sentimentos: “pode tudo consumir o tempo que passa feroz, mas esta valsa há de deixar pra nós” (“Uma canção inédita”, 2001); “dura a vida alguns instantes, porém mais do que bastantes quando cada instante é sempre” ( “Sempre”, 2006); “Não me leve a sério, passou este verão, outros passarão, eu passo” (“Leve”, canção de 1996 gravada em 2006 por Chico no cd “Carioca”). Algo que faz lembrar “Basta um dia” (1975), mas sem a sofreguidão de mocidade: “Pra mim basta um dia, não mais que um dia, um meio dia. Me dá só um dia e eu faço desatar a minha fantasia”.
É o homem de quem “A Rita” (1965) levou os vinte anos e os planos, deixando mudo um violão, que em 2006 canta novamente o amor: “quando eu ainda estava moço, algum pressentimento me trazia volta e meia por aqui talvez à espera da garota que naquele tempo estava longe, muito longe de existir”. E quando esta “ingrata”, que hoje corre nas ruas cariocas indiferente ao “olhar mendigo” de admiração do poeta, “já não mais garota der a meia-volta claro que não vou estar mais nem ai” (“Bolero Blues”, 2006, com Jorge Hélder). Enseja perguntas a canção: por que a musa só o “perceberia” quando já não fosse garota? O Chico que, a esta altura, não estará mais “nem aí”, refere-se à existência física, corpórea, ou ao encantamento fugaz do amor?
Estes fragmentos de uma obra imensa, de alcance incalculável, não lhe representam em sua totalidade e devem ser observados considerando estes limites, as licenças da poesia e as insuficiências de quem os colecionou, interpretou e relacionou. No entanto, embora o cancioneiro de Chico não tenha fronteiras espaciais ou temporais e pareça destinado a ser apreciado por gerações, é possível perceber uma mudança no modo em que o tempo e o envelhecimento foram tratados no começo da carreira do artista e agora, na fase contemporânea.
Do “estranhamento” do jovem ante um idoso em 1968 (“O velho”) à serenidade de quem se reconhece produto do tempo (“Tempo e Artista”, 1993), Chico se revela aqui e acolá nas letras de suas canções e é um artista do presente, seja o “presente” em que época for.

 

Advogada, especialista em Geriatria e Gerontologia pela UNATI/UERJ e Mestranda em Direito pela UFPa. E.mail para contato: hilton.anna@gmail.com

 

É bonito ver passar o tempo” nas canções de Chico Buarque
Por Anna Cruz de Araújo Pereira da Silva
Publicado em 28/02/2007

Deixe um comentário