Josélia Gomes Neves[1]
Publicado em 31/10/2006 como: www.partes.com.br/educacao/alfabetizacaointercultural.asp
Resumo: O tema deste estudo refere-se a uma sistematização introdutória de como vem se dando o debate sobre alfabetização intercultural e o processo de apropriação da cultura escrita[2] em áreas indígenas por parte de estudiosos sobre o assunto. Pretende apresentar os argumentos postos, bem como analisar a sua influencia no surgimento de tendências e orientações explicitadas nas políticas públicas educacionais voltadas para estas populações.
Palavras-chave: Educação Indígena, Alfabetização Intercultural, Cultura Escrita.
Os/as educadores/as não poderão ignorar, no próximo século, as difíceis questões do multiculturalismo, da raça, da identidade, do poder, do conhecimento, da ética e do trabalho que, na verdade, as escolas já estão tendo de enfrentar. Essas questões exercem um papel importante na definição do significado e do propósito da escolarização, do que significa ensinar e da forma como os/as estudantes devem ser ensinados/as para viver em um mundo que será amplamente mais globalizado, high tech e racialmente diverso que em qualquer outra época da história. (GIROUX, 1995, p.88)
Estudos sobre alfabetização intercultural vêm sendo desenvolvidos por vários pesquisadores[3] no intuito de verificar principalmente o impacto da cultura escrita em sociedades ágrafas, neste caso específico, as populações indígenas, tendo em vista as demandas surgidas que apontam para a necessidade da aquisição deste saber em função das relações pós-contato entre estes e a sociedade envolvente.
Vale ressaltar que a expressão alfabetização intercultural que apresentamos neste texto, deriva do termo Educação intercultural bilíngue, utilizado pela UNESCO para designar uma importante característica da educação escolar indígena, pois pressupõe o esforço do diálogo entre diferentes culturas e saberes, neste caso, a sociedade indígena e não-indígena. Encontra-se também fundamentada na Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Nº 9394/96 no artigo 78, onde estabelece que:
O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos:
I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências;
II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso à informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não-índias”.
Entretanto, a concepção intercultural é recente, pois a trajetória da educação escolar indígena (SILVA; GRUPIONI, 1995) nos informa que de maneira geral, a pretensão da escola era de integrar estas populações étnicas à sociedade nacional, no entanto, uma das razões que impossibilitava a consecução deste objetivo eram as línguas indígenas. Neste sentido, a tarefa da escola será justamente a de ensinar os alunos e alunas da aldeia a falar, ler e escrever em língua portuguesa para que assim este entrave fosse superado.
Mas as experiências demonstraram o fracasso de iniciativas desta natureza, ou seja, alfabetizar alunos em uma língua que eles não dominavam – a portuguesa. Sobre a questão, Maria Cândida Barros, afirma que: “[…] Uma experiência anterior de alfabetização entre as crianças Karajá havia mostrado sua inutilidade. O conhecimento da escrita havia caído no esquecimento pela falta de oportunidade e de necessidade de usar a escrita” (BARROS, 1994, p. 27). Situações como esta nos remetem as reflexões de Vygotsky sobre os estudos da linguagem enquanto um sistema simbólico produzido pelo ser humano, ou seja, uma espécie de ganho no processo evolutivo da espécie. Para ele, é por meio dela, que podemos fazer a mediação entre o sujeito e o objeto do conhecimento, bem como, socialmente possibilitar o desenvolvimento das funções mentais superiores que depois são culturalmente compartilhadas. Para Vygotsky: “O ensino tem que ser organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem necessários às crianças […] e a escrita deve ter significado para as crianças, uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida”. (VYGOTSKY, 1989, p. 133).
Assim, considerando o fracasso na alfabetização, o enfoque a ser empregado daí para frente foi o da utilização das línguas indígenas para garantir a aquisição da escrita, mas como o interesse era a integração dos índios, assim que os alunos aprendiam a ler e a escrever, a língua indígena era retirada da sala de aula, já que a aquisição da língua portuguesa continuava a ser a grande meta. Desta forma, a escola indígena acabava por contribuir para o enfraquecimento, desprestígio e, posteriormente, desaparecimento das línguas indígenas (BRASIL, MEC, 1998).
Contudo, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, à escola foi colocada à possibilidade de se constituir como um elemento a favor dos povos indígenas, na medida em que pode estimular e favorecer a manutenção ou revitalização das línguas indígenas ao incluí-la em seu currículo com a função e status de língua plena, desta forma assegurando uma proximidade em termos de paridade com a língua portuguesa.
Neste debate a respeito das línguas, destaca-se a escrita das línguas indígenas e suas implicações. A nosso ver, a função da escrita em língua indígena precisa ser amplamente estudada, além do que, há grupos étnicos que preferem não fazer uso escrito de suas línguas tradicionais.
As experiências em outras localidades (GAVAZZI, 1994) têm demonstrado que, com o passar do tempo, a situação pode ser modificada e o uso da língua indígena por escrito passa a fazer sentido e a ser desejável, pois as necessidades que os Povos Indígenas têm em relação ao saber escrito podem ser utilizadas como boas situações de aprendizagem, não sendo preciso então, a criação de argumentos ou versões artificiais, como a nossa conhecida cartilha do ABC. Assim, poderão apropriar-se efetivamente desta cultura, de tal forma que este domínio ou intimidade signifique um “[…] compromisso com uma escrita que permita comunicação e interação de fato – que seja fruto da tentativa de aproximação, a máxima possível, entre o que se pretende dizer, o que efetivamente se diz e o que pode ser compreendido – que exige, do começo ao fim, escolhas de natureza diversa e coordenação de procedimentos complexos…” (PRADO; SOLIGO 2005, p. 36)
Ao longo da discussão sobre a alfabetização intercultural, há posicionamentos de estudiosos favoráveis e não favoráveis quanto ao ensinar e aprender línguas indígenas na escola. De um lado, há aqueles que postulam que a introdução dessa prática na aldeia pode resultar em uma imposição do modo de vida ocidental, acarretando desinteresse pela tradição oral e impelindo à criação de desigualdades no interior da sociedade, entre os que são letrados e os não-letrados. Postulam ainda, sobre os riscos que as intervenções culturais sutis podem causar nas línguas indígenas no processo de transposição da oralidade para a escrita:
As línguas indígenas brasileiras são ágrafas, e sua inclusão na escola implica na criação de uma grafia e no estabelecimento de um registro escrito para conhecimentos que, originalmente, não são congelados em forma de texto, mas, ao contrário, recriados continuamente na produção oral. […] Afinal, grafias são elas também construções sociais e históricas, e sua produção técnica por não falantes da língua, por mais séria que seja, traz alguns “efeitos colaterais” sentidos e denunciados pelos seus falantes e pelos lingüistas mais atentos.
(COHN, 2006, p. 8 )
Ainda sobre o assunto, Maria Cândida Barros, indaga a respeito de como o mito narrado oralmente ao passar para o papel, produz uma ruptura em termos de domínio de saberes, pois: “[…] a publicação das narrativas tradicionais em forma de livro de leitura para a escola, acabam sendo de certas pessoas no grupo e não de todos: a sua difusão escrita na escola altera a forma de seu domínio ao separar o conhecimento do conhecedor” (BARROS, 1994, p. 32).
As diferenças entre as competências orais e escritas são evidenciadas por Maria Elisa Ladeira:
Questionamo-nos sobre qual o sentido e as conseqüências da escrita em sociedades orais, no caso das sociedades indígenas brasileiras. Sabemos, como antropólogos, que é ilusão pensar que a oralidade e a escrita sejam dois caminhos possíveis para se transmitir as mesmas mensagens.
(LADEIRA, 2002, p. 3)
Por outro lado, há aqueles e aquelas que entendem ser importante a aquisição deste conhecimento pelos povos indígenas, pois reduzir essas línguas a usos exclusivamente orais pode representar sua manutenção em posições de prestígio insuficiente e funcionalidade, reduzindo assim suas chances de sobrevivência no mundo contemporâneo. Então a apropriação da cultura escrita pode significar um ganho estratégico para estas línguas, na medida em que estarão ocupando um espaço junto à língua majoritária e conquistando, portanto um de seus mais relevantes territórios.
Atestando este argumento, Nietta Monte compartilha que: “Assiste-se com satisfação renovada, ao incremento, por parte dos próprios grupos indígenas acreanos, de uma atitude favorável às práticas escolares e de letramento em línguas indígenas, que até muito recentemente eram de tradição oral e ágrafa”. (MONTE, 1994, p. 65).
Experiências como estas, permitem a compreensão do contexto em que vivemos: uma sociedade mediada pela cultura escrita. Assim, há necessidade de apropriação destes saberes, daí o importante papel da alfabetização. Os conhecimentos atuais sobre alfabetização, traduzidos na Psicogênese da língua escrita, sustentam que o processo de construção da língua escrita é desenvolvido pelo aprendiz – criança ou adulto, o sujeito que interage com o meio social e com a escrita, o seu objeto de conhecimento. A ação docente é orientada para a problematização e intervenção, mediante a utilização de textos diversificados, com ênfase e valorização da atribuição de sentido à escrita. (FERREIRO; TEBEROSKY, 1985).
Neste sentido, compreendemos a importância da aquisição da cultura escrita na aldeia, como um compromisso inadiável da relação mundo contemporâneo e mundo tradicional, uma demanda presente na pauta da educação inclusiva, o direito legítimo ao saber universal a qual todos devem ter acesso, de forma a possibilitar vivências que assegurem o mágico e pessoal sentimento apontado por Guilherme Prado e Rosaura Soligo de que: “Ninguém poderá nos fazer aprender exatamente o que aprendeu com as leituras que fez e com os textos que escreveu. E nós não poderemos ensinar exatamente o que aprendemos com as leituras que fazemos e os textos que escrevemos”. (PRADO; SOLIGO 2005, p. 37).
Agora, para a cultura escrita ocorrer na aldeia é preciso levar em conta que, o esforço por parte da escola de manter e revitalizar a língua neste sentido é limitado, já que nenhuma instituição, pode se responsabilizar exclusivamente pelos destinos de uma língua. Assim como a escola não pode ser considerada como a única entidade que pode determinar o enfraquecimento ou a perda das línguas indígenas, ela também não tem o poder de sozinha, mantê-las em uso. Daí que cabe a comunidade, de forma incisiva a manutenção linguística de sua etnia (BRASIL, MEC, 1998).
Neste sentido, se justifica a importância do aprofundamento de estudos sobre a aprendizagem da leitura e escrita na aldeia, uma vez que estes instrumentos – o ler, escrever intimamente ligados a sua prática social, representam os meios pelos quais os povos indígenas dispõem para compreender a estrutura e funcionamento da sociedade envolvente. Para Bakhtin não há como entender a língua de forma isolada, uma vez que qualquer análise linguística deve considerar aspectos contextuais de fala, a relação do que fala com o que ouve, a conjuntura política e histórica, dentre outros.
Assim, para os povos indígenas, o saber escrito poderá representar um caminho para o relacionamento entre seus pares e para firmarem posições políticas comuns e consequentemente poderem tomar conhecimento de seus próprios direitos, resultando em reconhecimento e respeito, tendo em vista sua diversidade. Neste sentido, o Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, explicita a importância da cultura escrita na sociedade atual como um direito ao conhecimento:
Todos os documentos que regulam a vida da sociedade brasileira são escritos em português: as leis, principalmente a Constituição, os regulamentos, os documentos pessoais, os contratos, os títulos, os registros e os estatutos. Os alunos indígenas são cidadãos brasileiros e, como tais, têm o direito de conhecer esses documentos para poderem intervir, sempre que necessitarem, em qualquer esfera da vida social e política do país. (BRASIL, MEC, 1998, p. 121).
Sobre a cultura escrita na aldeia, as evidencias empíricas apontam que o fato dos povos indígenas atualmente exercerem atividades de leitura e escrita na língua portuguesa possibilita processos de melhor interação com a sociedade envolvente, visto que a escrita tem muitos usos práticos por eles já utilizados, tais como: elaboração de listas de compras, registros da produção e venda da castanha, anotações de endereços da cidade, ofícios, etc.
A escrita tem servido ainda para registrar[4], um pouco da sua história, a literatura, as crenças religiosas, os mitos, as receitas, enfim, o conhecimento do povo. Então, as funções deste objeto cultural na aldeia indígena estão muito claras – sintetizamos na defesa e possibilidade de exercerem sua cidadania e o acesso a conhecimentos de outras sociedades.
O fato de desconhecer este processo tem implicações diretas na própria definição das políticas públicas para estas populações. Sabemos que não basta a escola ter como tarefa específica à alfabetização dos alunos e alunas: cabe a ela o dever de criar condições para que eles/as aprendam a escrever textos adequados às suas intenções e aos contextos em que serão lidos e utilizados.
Referências
BAKHTIN, M. Marxismo e Filosofia da Linguagem. S. Paulo: Hucitec, 1988.
BARROS, Maria Cândida Drumond Mendes. Educação Bilíngüe, Lingüística e Missionários. Em Aberto, Brasília: v. 14, n. 63, p.18-37, jul./set., 1994.
BRASIL. Ministério da Educação. Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas. MEC: Brasília, 1998.
_______ . Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Nº 9394/96. Brasília, 1996.
COHN, Clarice. Notas sobre a escolarização indígena no Brasil. Disponível em: http://www.acoesafirmativas.ufscar.br/escolIndClarice.pdf Acesso dia 23 de setembro de 2006.
FAUNDEZ, A . A expansão da escrita na África e na América Latina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994.
FERREIRO, Emília. Cultura Escrita e Educação. Porto Alegre: Artmed, 2001.
FERREIRO, E. & TEBEROSKY, A. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
GAVAZZI, ANTONIO RENATO. Observações sobre uma sociedade ágrafa em processo de aquisição da língua escrita. EM ABERTO, Brasília: v. 14, n. 63, p. 151 – 159, jul./set., 1994.
GIROUX, H. Praticando Estudos Culturais nas Faculdades de Educação; In: Silva, T. T. (org) Alienígenas na sala de aula. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.
LADEIRA, Maria Elisa. Sobre a língua da Alfabetização Indígena. Disponível em: http file:///C|/ingua-alfabetiza.htm (5 of 5). Acessado em 8/1/2002
MONTE, Nietta. Escolas da floresta: entre o passado oral e o presente letrado. Rio de Janeiro: Multiletra, 1996.
PRADO, G.V.T.; SOLIGO, R. A. (orgs.). Porque escrever é fazer história. Campinas: Graf. FE, 2005.
SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. A Temática Indígena na Escola: subsídios para professores de 1º e 2º graus. Brasília: MEC/MARI/UNESCO, 1995.
VYGOTSKY, L. A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
[1] Profª Mestra da Universidade Federal de Rondônia- UNIR – Campus de Ji-Paraná, Departamento de Ciências Humanas e Sociais. Ministra aulas no Curso de Pedagogia; é líder do Grupo de Pesquisa em Educação na Amazônia/GPEA; coordenadora da linha de pesquisa:
[2] Adotamos a concepção de cultura escrita utilizada por Emilia Ferreiro, com o entendimento de que o ato de ensinar a língua escrita deve possibilitar aos alunos e alunas o desenvolvimento das capacidades de leitura e de produção de textos de diferentes gêneros, que circulam socialmente e que estão presentes no cotidiano das sociedades letradas a fim de que possam sempre que necessário fazer uso destes conhecimentos. FERREIRO, Emília. Cultura Escrita e Educação. Porto Alegre: Artmed, 2001.
[3] Cf. BARROS, M. C. D. M.. “Educação Bilíngüe, Lingüística e Missionários”. In: Em Aberto, Brasília, ano 14, n.63, jul./set. 1994, p.18-37 e FAUNDEZ, A . A expansão da escrita na África e na América Latina. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1994.
[4] MINDLIN, Betty et al. Couro dos espíritos : namoro, pajés e cura entre os índios Gavião-Ikolen de Rondônia. São Paulo : Senac ; Estação Liberdade, 2001. 254 p.