Por Gustavo Dumas
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O Maldito Fraga publicado em 26/
Bem sabemos que obra literária nenhuma existe sem uma autoria. No caso específico da prosa, cabe ao autor, inicialmente, construir um narrador; depois, uma estória para seu narrador ir contando, e nela, é claro, encerrar personagens e conflitos que se resolverão (ou não…) no fim da narrativa. Sabemos ainda discernir com certa facilidade, separar as figuras de autor-narrador-protagonista. Não nos é difícil executar essa separação num livro literário normal, ou seja, naquele que segue em princípio o paradigma literário-narrativo clássico. Pois que os modernistas mais badalados e seus maiores herdeiros visaram a justamente interromper o olhar facilmente ledor do leitor comum, e a debater com o julgamento viciado do mais chato estudante de letras. Livros como Macunaíma e Memórias sentimentais de João Miramar, de Mario e Oswald de Andrade, respectivamente, serviram para tanto. E é aqui neste nobre e importante e implicante grupo que podemos inserir a novela Desabrigo, de Antônio Fraga, agora relançada junto a contos ainda inéditos do autor – os outros trecos do título. Fraga puro é o livro.
O livro em si é uma agressão, porém uma agressão consternada: um tapa de amor. Ou um sangue de cachaça de que acadêmico nenhum se deve servir. Em Desabrigo convivem o drama de nossa malandragem e a malandragem de nosso drama. A voz do autor é uma voz rimada de quem não fez uma pesquisa de linguagem, e sim uma pesquisa de vida. Não se trata da voz pedante de quem faz uma concessão ao narrar um episódio do pessoal das esquinas. E é justo nessa pesquisa de vida que a linguagem se embute, porque autoritária à vivência daquela gente que se vira na vida. A linguagem é a própria estória. E o autor é o narrador, que coincide ainda com os personagens e o cenário. Complicado?! O meio trata de permitir a construção desta linguagem-estória, legitimá-la. A linguagem acaba sendo, assim, também a grande paisagem do livro, paisagem humana e geográfica, paisagem social da marginalidade de um país. E a linguagem, por conseguinte, advém do autor, sua vida, suas brigas, sua experiência: é, afinal, Antônio Fraga.
Fraga (1916-1993) é um daqueles autores únicos que assumem um projeto de literatura – e de vida – sem que se perca em mesquinhas concessões, por dispor de uma consciência estética quiçá contrária a qualquer normalidade estagnadora da arte. Fraga não ligou em vida sua obra a um estabelecer, não se fez um profissional das letras; permaneceu nele um instinto amador que casou excelentemente com a oportunidade de uma estética que quis aprofundar os experimentos do modernismo e fazê-lo alcançar maturidade. Isto segundo Oswald de Andrade, na contracapa do livro: “O que há, não é post-modernismo e sim a nova literatura do Brasil. Veja: na prosa a maturidade esta aí, em Clarice Lispector, em Guimarães Rosa, em Antônio Fraga.”
O que importa, pois, em Desabrigo, não é nem tanto os fatos narrados, e sim o “fraga” de toda uma situação e de sua ética improvisada para a imediata sobrevivência no meio: os tipos, a gíria, o pitoresco, aquelas teias de solidariedade espontânea e ingênua que a precariedade material cuida de estabelecer. Um exemplo: “Cobrinha andava teso pra chuchu Embora fosse safo tava dando uma azia danada Bem que ele podia afanar um estácio ou topar o basquete mas não era guindaste para enfrentar batente e não queria se encalacrar com a dona justa” – assim mesmo, sem pontuação e prenhe do linguajar e do ponto de vista que caracterizam o marginalizado/malandro carioca de décadas remotas (remotas?!…). Garrafas se quebram, fome se passa, bebe-se em demasia, bate-se, mata-se, todo mundo se defende; mas, na hora da dita, na hora em que o côro comi, prevalece um senso de justiça que nossa democracia tão frágil, por vezes bundona, com seu politicamente correto hipócrita não conseguiu ainda assimilar. No mundo-estória de Desabrigo, respira-se cultura, anarquia, poesia maldita.
Fraga institui o tipo de um jogador-narrador que usa de um naturalismo cômico descomprometido. Isto se evidencia até em seu diálogo violento com o que se costumou chamar de modernidade: o escritor e o homem Fraga a espezinham, proclamando a virtude de um fazer literário literalmente marginal. Tudo porque sua prosa desobriga e desabriga a palavra; a linguagem “se boemiza”, arrasta-se bêbeda sem um rumo previsível, sem um sentido lógico específico, sem destino e prumo; sua palavra arrasa com a tradicional e facilmente marcada lógica da causalidade, papai-mamãe que todo crítico ou resenhador procura inexoravelmente em sua cama macia, que é o livro obtido do suor alheio. A palavra sobrevive, na e da errância se sustenta, alimenta-se de sua própria incapacidade de (a)fixação, sabendo-se “evêmera”, daí leve, e vai decaindo até encontrar um ponto final inexistente, inusitado. A palavra conhece que não é a verdade – não há letra maiúscula para iniciar a novela, como se também não houvesse um início legítimo a se reconhecer, e sim uma saída, uma fuga ajeitada a todo momento para uma situação humana irreversível. Destaca-se ainda, sobretudo em seus contos-trecos, a presença significativa do humor, um humor sutil que tenta sempre neutralizar a rispidez e insegurança de uma realidade diária tão ríspida.
Daí que só haja letra torta, letra-gíria para Antônio Fraga, o poeta, o malandro, o prosador-jogador. Nesse caminho ele confia – e porque não haveria ou consideraria outro. “Pois é. Tempero de pobre é fome. Quem tem muito faz beicinho…” E Desabrigo é ele próprio, Fraga, em toda parte-esquina, observando, refletindo, escrevendo, se bandidando honestamente. E, parafraseando outro gentil malandro recém-largado desta boêmia vida, o Zé Ketti: indo por aí…
Serviço:
FRAGA, Antônio. Desabrigo e Outros Trecos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1999. 118 p.
Site: www.escrituras.com.br/liv_idade_do_zero.htm#http://liv_idade_do_zero.htm. Comunidade de IDADE DO ZERO no ORKUT: http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=6096120.
Comunidade de ANTÔNIO FRAGA no ORKUT:
http://www.orkut.com/Community.aspx?cmm=7565856.
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