Josélia Gomes Neves
Publicado originalmente em 25/10/2005 como www.partes.com.br/educacao/psicogenese.asp
O direito à saúde significa, entre outras coisas, o direito de todo indivíduo a uma atenção médica atualizada de acordo com os avanços científicos e técnicos dessa área profissional O direito à alfabetização não pode significar menos do que isso.
Emília Ferreiro
Resumo: Neste trabalho apresentamos algumas reflexões desenvolvidas a partir da vivência com os professores e professoras indígenas das etnias Arara, Gavião, Suruí, Zoró e Cinta-Larga por ocasião do desenvolvimento do Curso de Formação Inicial de Professores Indígenas – Projeto Açaí em 2004 no município de Ouro Preto do Oeste em Rondônia. Trata-se de um relato que procura articular a experiência vivenciada que teve como suporte teórico às contribuições da concepção construtivista de alfabetização. Palavras-chave: Alfabetização, Psicogênese, Contexto Indígena, Construtivismo.
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Introdução A disciplina de alfabetização no magistério indígena foi planejada considerando as aprendizagens que temos construído ao longo de nossa formação, como professora alfabetizadora de crianças e adultos, docente desta área do conhecimento em cursos de graduação de Pedagogia e especialização em Psicopedagogia e, posteriormente na condição de consultora do Ministério de Educação do Programa de Formação de Professores Alfabetizadores – PROFA (MEC, 2001). Em função desta caminhada, propomos os seguintes eixos de discussão para o desenvolvimento do curso: Como as professoras e professores indígenas realizam atividades de alfabetização em sala de aula? Quais as suas concepções a respeito do ensino da leitura e da escrita? Como respondem as problematizações sobre suas práticas? No decorrer do trabalho, procuramos problematizar algumas situações apresentadas bem como disponibilizar os conhecimentos atuais sobre o processo de aprendizagem inicial da alfabetização considerando as contribuições da Psicogênese da língua escrita. No intuito de propiciar momentos em que a turma trabalhasse a prática leitora e escritora, combinamos que após a leitura do relatório da aula anterior – prática comumente realizada pelos professores sobre o trabalho desenvolvido, eu faria uma leitura compartilhada, objetivando enfatizar o papel da escuta de bons textos – uma estratégia interessante para ampliação do repertório linguístico, na medida em que informa as características, o formato do texto, etc. Lemos textos de Paulo Freire, do livro Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa e o de Márcio Souza, o romance Mad Maria que trata de um triângulo amoroso entre uma boliviana, um médico irlandês e um índio Karipuna, por ocasião da construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré – momento muito esperado, talvez porque resgatasse um pouco da História de Rondônia no início do século XX, mais ou menos em 1910 além de outras obras de gêneros variados. Os desdobramentos a respeito destas leituras compartilhadas foram surpreendentes, particularmente o livro Mad Maria: tivemos palestras ministradas pelo professor Batiti Karipuna e em seguida pelo professor Arão Oro Wijen sobre o contato dos povos indígenas com os trabalhadores da Estrada de Ferro, além da exibição do filme-documentário, A Ferrovia do Diabo de Beto Bertagna. Em relação à escrita, cada um recebeu um Caderno de Registro para escrever diariamente o que foi significativo para a sua aprendizagem fazendo anotações também sobre possíveis dúvidas. Nossa pretensão era que fizessem uso do conhecimento escrito e também foi uma maneira de buscar pistas para reorientação do nosso planejamento. O resultado foi muito interessante, pois o envolvimento de todos e todas nos impressionou. Escreviam, a grande maioria, de uma forma muito clara, além de colocarem questões que efetivamente contribuiu para revisão e modificação do que havíamos pensado para o desenvolvimento das aulas. Representou também uma alternativa de diálogo, principalmente para alguns mais tímidos ou reservados que não se expunham com freqüência no grande grupo e ali foi uma oportunidade desta conversa se estabelecer. Inicialmente desenvolvemos uma série de atividades diagnósticas. Para tanto, após a leitura compartilhada, conversamos a respeito da disciplina, seus objetivos básicos, ocasião em que ressaltamos a importância de se alfabetizar a partir de textos, ou seja, privilegiando uma relação funcional e significativa com a língua desde o início. Explicamos que nossas aulas aconteceriam sempre através de debates, leitura e produção de textos, de forma individual e coletiva e que a avaliação seria contínua através das atividades propostas, discutidas e realizadas por todos e todas. Considerando a premissa Eu alfabetizo meus alunos e alunas assim… – os docentes, planejaram e apresentaram uma simulação de sua própria sala de aula, essa atividade teve uma parte de planejamento e outra de apresentação para o coletivo. Cada etnia apresentou a sua dramatização. Na oportunidade foi possível observar a forte influencia dos métodos analíticos, sintéticos e fonéticos no desenvolvimento das aulas, influencia dos missionários através da tradicional cartilha – de acordo com informação deles e ainda fundamentados em suas próprias histórias de como foram alfabetizados, através da produção de texto individual: Memórias do tempo em que fui alfabetizado. Foi muito enfatizado pelos professores e professoras suas dificuldades em se alfabetizar devido à excessiva atividade de cópias envolvendo muitas vezes palavras que desconheciam. A esse respeito Emília Ferreiro, assinala que: A ênfase praticamente exclusiva na cópia, durante as etapas iniciais da aprendizagem, excluindo tentativas de criar representações para séries de unidades lingüísticas similares (listas) ou para mensagens sintaticamente elaboradas (textos), faz com que a escrita se apresente como um objeto alheio à própria capacidade de compreensão. Está ali para ser copiado, reproduzido, porém não compreendido, nem recriado. (FERREIRO: 1993, p. 19) Dando continuidade ao levantamento de como trabalham a alfabetização na escola indígena, cada etnia apresentou num cartaz dados referentes ao desenvolvimento de seu trabalho. Informaram que alfabetizam primeiramente na língua materna, levando em conta que as crianças ainda não falam bem a língua portuguesa e que na 3ª e 4ª série é que ensinam a ler e escrever nesta segunda língua. Individualmente desafiamos o grupo a refletir sobre a questão: Estar alfabetizado é… Todos responderam, utilizando pedaços de cartolina, sobre o que pensavam a respeito do assunto, fizemos a leitura de todas as respostas e consultando o grupo retiramos as repetidas, deixando apenas aquelas consideradas mais completas. Em algumas situações, houve debate, pois algumas pessoas defendiam a retirada da tarjeta e outros tinham opinião diferente. Então nossa proposta foi no sentido de problematizar as razões de um e outro lado, no final prevaleceria o consenso. O grupo respondeu que: Estar alfabetizado é saber ler e escrever com entendimento. Perguntei se poderia riscar o com entendimento e falaram que não, que para ser completa, a resposta tinha que constar esta expressão. Era importante compreender isto, pois refletiria a concepção das professoras e professores indígenas a respeito de quando e como é que consideram que alguém estar alfabetizado. Na atividade de memória, resgataram um pouco da sua história de alfabetização. Foi muito interessante este momento, pois além de recorrerem às lembranças, produziram um texto com estas e socializaram lendo coletivamente para os colegas o que escreveram. Questionei o porquê daquela atividade, qual a importância de lembrarmos do tempo em que fomos alfabetizados – com muita frequência indagava o porquê de estar propondo esta ou aquela atividade e reafirmava a importância de termos clara a nossa intenção educativa, ou seja, conseguir responder: o que eu quero que os meus alunos aprendam? As intervenções foram no sentido de que era muito bom lembrar para avaliar o que foi interessante e o que não contribuiu muito para a aprendizagem. As memórias se constituíram em importantes relatos, demonstrando as dificuldades e denunciando uma série de maus tratos, sintetizados em castigos físicos, como, por exemplo, ficar em pé, braços abertos e em cada mão, livros pesados ou em forma de violência cultural: ser alfabetizado numa língua, a portuguesa, da qual não faziam uso dela e ainda eram proibidos de se comunicar na língua materna. A constante descontinuidade do processo educativo: professoras da Fundação Nacional do Índio – FUNAI que ministravam apenas dois ou três meses de aula na aldeia e desapareciam sem explicações; as palavras descontextualizadas sem significado, que eram obrigados a decorar, como o caso da palavra FOCA, cujas sílabas eram exaustivamente repetidas; as aulas em escolas de não-índios e toda sorte de discriminação decorrente dessa relação. E, houve lembranças, não muitas, de professoras que contribuíram em suas aprendizagens, que propunham atividades desafiadoras e respeitavam a diversidade que vivenciavam e um caso interessante o do Embusã Zoró, professor que alfabetizou o Marcelo Zoró, e no momento, ambos estudantes no Projeto Açaí. No decorrer das aulas propus a seguinte atividade: que tipo de orientação se poderia oferecer a um professor iniciante – ele iria atuar pela primeira vez numa sala de aula para ensinar as crianças a ler e escrever com entendimento. Combinei que escreveria as orientações na lousa. Sugeriram iniciar a aula com um desenho de um animal. Perguntei se poderia ser o desenho de um elefante. Ouvi um soro: NÃO! Explicaram que seria melhor um desenho da anta – animal conhecido pelas crianças, pois assim elas poderiam participar mais da conversa já que teriam muita coisa para falar sobre ela – senão o professor iria ficar falando sozinho. A sequência didática ficou assim: a) Mostra do desenho da Anta; Conversa com as crianças sobre a Anta; b) Elaboração de um texto coletivo sobre a Anta. (De acordo com suas contribuições fomos elaborando o texto. Foi interessante que ao se referir a Anta, evitavam repetir a expressão: A Anta procuravam substituir, por: Ela vive… ou Esse animal… etc, o que nos sugere um conhecimento sobre as exigências na produção de um bom texto); c) Leitura do texto pelo professor, indicando com o dedo, lápis ou régua, as palavras ora lidas; d) Escrita do texto no caderno pelas crianças, acompanhado ou não de desenhos. Com vistas a problematizar, levando em conta o objetivo de explicitar a concepção empirista, sustentada pela ideia de que aprendemos exclusivamente mediante os exercícios de repetição visando à memorização, com base nas informações do texto por eles elaborado, escrevi: A Anta é um animal muito gordo. A Anta vive no mato. A Anta come frutas da floresta. Então, questionei: preciso mostrar aos meus alunos como se escreve um texto, na opinião de vocês, qual é a melhor proposta, o 1º ou o 2º? Responderam por unanimidade: O 1º. A justificativa é que o 2º texto repete muito a palavra Anta. Propus esta situação, porque eu havia observado exemplos parecidos em alguns cartazes por ocasião da simulação da aula. Anotei depois em meu caderno, esta observação para pensar numa forma de retomar esse assunto. As atividades diagnósticas estavam concluídas, e sistematizamos as discussões da seguinte forma: Em relação à sua forma de alfabetizar, foi possível observar que: a) Utilizam um modelo de aprendizagem conhecido como estímulo-resposta, as respostas erradas devem ser substituídas por certas. Cabe ao aluno memorizar e fixar informações. Este modelo pressupõe que o conhecimento está fora do sujeito, é interiorizado através dos sentidos, o que fundamenta crenças como a ideia de que o aluno entra na escola “zerado”, isto é, não sabe nada. Há uma grande valorização da acumulação de informações. A língua é vista como transcrição da fala, a aprendizagem corresponde ao acúmulo de informação e memorização, o ensino se dá por meio de repetição e cópias (WEISZ, 2000). Entretanto suas concepções sobre alfabetização negavam um pouco essa prática na medida em que defendiam uma relação mais significativa com a língua, uma vez que consideram que alguém alfabetizado é aquele que sabe ler e escrever com entendimento fundamentados nos pressupostos construtivistas. Os conhecimentos atuais disponíveis sobre a aquisição da leitura e da escrita nos autorizam a afirmar que para ter este domínio competente de ler e escrever com entendimento é necessário compreender que: a) O conhecimento não é cópia do real, incorporado diretamente pelo sujeito, pressupõe uma atividade por parte de quem aprende que organiza e integra os novos conhecimentos aos já existentes; b) O aprendiz é protagonista de seu próprio processo de conhecimento, através de situações-problema onde precisa agir sobre o objeto, pensar, receber ajuda e interação com outros; c) O conhecimento prévio é ponto de partida para novas aprendizagens; d) O conhecimento deve ser oferecido por inteiro e de forma funcional, não fragmentado. e) A informação deve circular na sala de aula e a intervenção pedagógica é fundamental (WEISZ, 2000). Já suas memórias revelaram situações de aprendizagens avaliadas por eles e elas como inadequadas, na medida em que se aprendia mediante e exclusivamente a memorização, sem privilegiar os processos de compreensão, de significado e sentido para quem está aprendendo por meio de apresentação de palavras e famílias silábicas. Ao anotar suas sugestões referentes às orientações a um professor iniciante, confesso que fiquei com muitas perguntas, pois a forma como descreveram o processo permitia à ideia de que é possível alfabetizar através de textos, com sentido para quem está aprendendo. E na elaboração dos textos, preferiram não repetir palavras, quando problematizei a respeito do melhor texto para ser apresentado aos alunos, apontaram o 1º, com mais dados e mais bem escrito – já mencionado acima. Considerando os resultados destas três atividades, resolvi fornecer algumas informações que avaliei serem importantes, para que compreendessem algumas lógicas aparentemente contraditórias nas respostas observadas. Propus a exibição do documentário: A construção da escrita – a reflexão nesse momento era, como surge à necessidade das pessoas se comunicarem por escrito, dado importante considerando que a cultura indígena tradicionalmente se apoia na oralidade. Para ilustrar a atividade, convidei Sandra Arara e Iran Gavião para demonstrar a seguinte informação sem utilizar letras: Fui à Aldeia. Volto Amanhã. Assinado Pedro Arara. Utilizaram os seguintes símbolos: ® e ¬ indicando ir e vir. Convidamos um aluno de outra sala para “ler” a mensagem, pois apagamos a que estava escrita. Discutimos as razões dele não ter conseguido entender e conversamos sobre a palavra convenção, colocando que se combinássemos que ao utilizarmos este símbolo queremos dizer que estamos indo ® e este ¬ estamos voltando, estávamos com esse acordo, convencionando o uso destes símbolos que precisam ser ensinados para os que não sabem. Expliquei que essa ilustração mostra um pouco do percurso sobre a construção da escrita desenvolvida por muitos povos. Pediram para ver o vídeo novamente e escreveram a respeito em seus cadernos de registro. O outro documentário tratava da História da alfabetização – sintetizado em três grandes períodos – a discussão inicialmente era centrada nos métodos, depois a ênfase nas chamadas habilidades básicas e posteriormente nas contribuições da Psicogênese da língua escrita, demonstrando que a idéia sobre o que é alfabetização é definida historicamente, ou seja, o que vale para uma época, em outra pode ser questionado. Após o vídeo, retomei as concepções definidas por eles/as: Por que não basta mais dizer que alfabetizado é alguém que sabe ler e escrever? Por que precisamos acrescentar a expressão com entendimento? Eles brilhantemente responderam que tem gente que lê, mas não sabe dizer o que leu e também tem dificuldades para escrever uma história. Propus ainda, dando continuidade a esta estratégia de fornecer mais informações sobre a aprendizagem da leitura e da escrita, a leitura do texto: As ideias, concepções e teorias que sustentam a prática de qualquer professor, mesmo quando ele não tem consciência delas, (WEISZ, 2000) a ser lida por grupo étnico. Meu objetivo era possibilitar uma reflexão sobre o que fundamenta as coisas que fazemos na sala de aula, se planejamos atividades com ênfase na cópia, significa que esta ação revela que compreendemos a aprendizagem como acúmulo de informações, baseadas em muita repetição, resultando num processo mecânico do ensino. De acordo com os relatos no grupo, tiveram muitas dificuldades para entendê-lo. Entretanto o fato de terem lido, já era importante. Não esperava mesmo interpretações completas de imediato, até porque o texto seria retomado mais à frente, através de uma produção de resumo, o que conseguiram realizar de forma satisfatória. Conforme esta sequência da aula, fiz algumas perguntas muito perigosas que eu já antecipava iriam provocar conflitos cognitivos na turma: Será que alfabetizamos como nossos/as professores/as nos alfabetizaram? Repetimos sílabas como retalhos da língua? Quais serão as lembranças que nossos alunos/as terão de nós? A reação foi um misto de dúvidas, perguntas meio cortadas, respostas imediatas: não. Era uma prática comum em todas as aulas, após uma discussão, os alunos e alunas discutirem com suas etnias na língua materna. Neste dia, foi um grande alvoroço, falavam muito e quase que ao mesmo tempo. Após o intervalo, depois de conversar um pouco com o pessoal técnico que acompanhou as discussões, sobre as suas interpretações a respeito destas atitudes, convidei a turma para conversar sobre o que estava acontecendo. Sei que o conhecimento é desagregador, sua lógica se apoia na permanente construção e desconstrução do estabelecido, tinha uma ideia de que ali estava se processando um desequilíbrio. Minha hipótese não demorou a ser confirmada. Durante a conversa, desabafaram: a nossa forma de trabalhar na alfabetização é igual aos de nosso/as antigos/as professores/as, mas como fazer diferente se só sabemos alfabetizar assim? Explicitaram essa questão falando e outros expressando no caderno de registro, deixaram muito claro que esta era a pergunta, evidenciando que: Nenhuma prática pedagógica é neutra. Todas estão apoiadas em certo modo de conceber o processo de aprendizagem e o objeto dessa aprendizagem. São provavelmente essas práticas (mais do que os métodos em si) que têm efeitos mais duráveis em longo prazo, no domínio da língua escrita como em todos os outros. Conforme se coloque a relação entre o sujeito e o objeto de conhecimento, e conforme se caracterize a ambos, certas práticas aparecerão como normais ou como aberrantes. É aqui que a reflexão psicopedagógica necessita se apoiar em uma reflexão epistemológica. (FERREIRO, 1989, p. 31)
A partir daí, coloquei que continuaríamos nos apropriando de algumas formas de pensar e desenvolver a alfabetização, que muitos professores e professoras vêm sistematicamente demonstrando em sala de aula, onde muitos alunos e alunas conseguem aprender a ler e a escrever, fazendo correspondências com o uso de práticas sociais escritas. Salientei, que já havíamos vivenciado durante a disciplina situações semelhantes. Recuperei a atividade referente à orientação ao professor iniciante e às propostas por eles/as sugeridas, principalmente no que se referia à produção de texto coletiva, revi o incômodo da questão da repetição que eles não mais aceitaram na construção do texto em discussão e outras observações neste sentido. A próxima atividade para ajudar na questão posta foi de assistir a um vídeo: A construção da escrita- parte II onde as crianças produziam escritas de acordo com o seu conhecimento disponível e conforme as ideias que as mesmas têm sobre o funcionamento deste objeto. Foi interessante porque pudemos refletir e ver a criança como alguém inteligente, que observa as outras pessoas, organiza informações e tira suas conclusões sobre as coisas. O fato da Larissa – quatro anos – filha da Marli Arara está sempre na sala, ajudou a ilustrar esta questão, a partir de uma fala dela que posteriormente era repetida por todos e todas: Castiano, Castiano! Discutimos como ela aprendeu este comentário – observando as pessoas mais próximas – e como fez uma aplicação correta dele – o que mostra que não é apenas um ser que repete, mas que, sobretudo, recria de forma original, se apropria, aprende. Fez este comentário para o Cristiano, como sinal de advertência. Sobre a questão, FERREIRO (1999, p. 24), assinala que: No lugar de uma criança que recebe pouco a pouco uma linguagem inteiramente fabricada por outros, aparece uma criança que reconstrói por si mesma a linguagem, tornando seletivamente a informação que lhe provê o meio. Numa outra atividade, confeccionamos um alfabeto fixo e depois um móvel, bem como um texto a partir da lista dos nomes dos cursistas da sala. Discutimos que através de atividades de leitura e escrita a partir dos nomes dos alunos e alunas, podemos possibilitar situações ricas e significativas para alfabetizar. Sistematizamos depois estas discussões em um cartaz: Orientações para a professora ou o professor alfabetizador/a: a)Ter na classe um alfabeto fixo na parede e um outro móvel; b)Diariamente conversar com as crianças sobre o que fizeram; c) Organizar um texto sobre o assunto, na lousa ou papel para elas observarem as forma de escrevê-las; d) Pedir às crianças para escreverem o texto no caderno acompanhado ou não de desenhos. Salientamos a importância de se partir do nome porque este possibilita várias informações sobre as letras: que letras são, quantas são, em que ordem estão colocadas, além de ser uma palavra que tem muito sentido, pois está diretamente ligada à identidade pessoal, com aspectos estáveis. É um possível parâmetro para confrontar o pensamento da criança sobre a escrita com a realidade da grafia convencional. Na própria sala organizei a lista do nome dos alunos e alunas por ordem alfabética, o que permitiu a simulação de várias atividades as quais relacionávamos o estudo dos nomes à pesquisa e ajuste do alfabeto fixo e a escrita em alfabeto móvel. Após vivenciar várias atividades nesta linha, os grupos por etnia, confeccionaram os seus respectivos alfabetos – fixo e móvel, na língua materna e portuguesa, planejaram atividades relacionando-o à lista de nomes dos seus alunos e alunas; a narração e escrita de um texto mítico – representado por um aluno que ainda não lia convencionalmente e sendo escrito por um outro que já sabia, em seguida com toda a sala, o texto foi relido e revisado, palavras foram destacadas e utilizadas na elaboração de uma cruzadinha; a escrita e a leitura de um texto estável (conhecido pelas crianças de memória) também na língua materna, a maioria dos textos foi de música, receitas e a exposição dos materiais escritos – portadores de textos, disponíveis na aldeia em língua portuguesa. A avaliação foi de que os estudos estavam sendo proveitosos e estavam entendendo um pouco sobre as novas formas de alfabetizar. RECEITA DE BEBIDA INDÍGENA CHICHA DE MILHO Porção para 10 pessoas Ingredientes: 20 espigas de milho maduras Modo de fazer Debulhe as espigas de milho, coloque os grãos em um pilão, e umas 5 mãos cheias de grãos devem ser reservadas. Macere os grãos no pilão até virar um pó bem fininho, em seguida, peneire; reserve a parte mais fina e a parte mais grossa (granulada) deve ser novamente pilada. Quando os grãos se transformarem em pó de milho, coloque em água fervente, preferencialmente numa grande panela de barro. Deixe ferver por mais ou menos 2 horas em fogo alto, mexendo de vez em quando. Após esse tempo, retire do fogo e deixe esfriar. Os grãos reservados são colocados em uma panela até ficarem bem assados, depois serão colocados em um lugar para esfriar. Em seguida, as mulheres mais jovens farão esse preparo, mastigando os grãos torrados até ficarem parecidos com o mingau – o fermento da Chicha. Após cada mastigação colocam em uma vasilha à parte. Antes de colocar o fermento na Chicha, a mulher pergunta se alguém da família ou vizinhos querem um pouco, pois depois que ela misturar, só se poderá beber no outro dia (para poder pegar o gosto melhor). A mulher acorda bem cedo, mais ou menos às 5 horas da manhã antes do marido sair para o mato e abre a panela da Chicha. Com um grande mexedor, mistura bem e peneira, recolhendo à parte líquida, que é a bebida pronta para ser ingerida. A parte mais grossa serve de alimento para os animais. A bebida é oferecida para o marido e os filhos, depois para os vizinhos ou visitas. De um dia para o outro ou até 3 dias, a Chicha poderá ser tomada sem álcool, se ficar em repouso por mais tempo se converte em bebida alcoólica. Professor Mojagara Suruí
Neste trabalho, levando em conta o conhecimento das professoras e professores indígenas a respeito das práticas alfabetizadoras, nosso propósito foi desenvolver atividades problematizadoras de reflexão sobre a leitura e a escrita, o significado do aprender a escrever em nossa sociedade, na perspectiva freireana, de que o conhecimento compromete, preocupação compartilhada por Emília Ferreiro: Minha função como investigadora tem sido mostrar e demonstrar que as crianças pensam a propósito da escrita, e seu pensamento tem interesse, coerência, validez e extraordinário potencial educativo. Temos o dever de escutá-las. Temos de ser capazes de escutá-las desde os primeiros balbucios escritos (contemporâneos de seus primeiros desenhos). (FERREIRO, 2002, p. 36)
Não se constituiu em objetivo referendar conhecimentos que hoje já não atendem mais as exigências de um mundo letrado, nem tampouco, ensiná-los o Ba Be Bi Bo Bu, isto, isso eles já sabem, pois foi muito bem ensinado pelos missionários – o que nos faz questionar se de fato temos um Estado laico, considerando a grande influência da igreja ainda hoje junto a esses grupos que têm livre acesso às aldeias. Sugerimos atividades de escritas na concepção de que a criança pode escrever, mesmo sem saber escrever. Por exemplo, seu nome e dos colegas, listas de títulos de histórias preferidas pela turma, listas de nomes de personagens de determinadas histórias ou mitos, listas dos ingredientes de uma receita, listas de animais existentes na aldeia, etc. Entretanto, alertamos para o fato de que não deveremos saber que as crianças não irão escrever se o tempo todo cobrarmos deles/as escritas totalmente “corretas”. Precisamos ter claro que no início da alfabetização, as crianças ainda não dão conta disso. Não é aconselhável corrigir de imediato os erros, pois são passageiros e representam uma tentativa de compreender a escrita, entretanto, isso não significa que não se deve fazer nada, a intervenção do/a professor/a é muito importante para problematizar com o aluno/ao que está acontecendo e o que pode ser feito. Sabemos que a alfabetização deve privilegiar a articulação entre a oralidade e a escrita, a nosso ver, em um contexto indígena essa preocupação deve ser maior levando em conta o pouco sentido da utilização da escrita para estes povos cuja cultura fundamenta-se milenarmente em práticas orais. A observação da aquisição da linguagem oral possibilita o conhecimento de importantes pistas sobre o ensino da escrita, conforme afirmações de Emília Ferreiro: Em língua oral permitimos à criança que se engane ao produzir, tanto quanto ao interpretar, e que aprenda através de suas tentativas para falar e para entender a fala dos outros. Em língua escrita todas as metodologias tradicionais penalizam continuamente o erro, supondo que só se aprende através da reprodução correta, e que é melhor não tentar escrever, nem ler, se não está em condições de evitar o erro. A consequência inevitável é a inibição: as crianças não tentam ler nem escrever e, portanto, não aprendem. (FERREIRO: 1993, p. 31) As escritas podem ser propiciadas a partir dos chamados textos estáveis – aqueles que as crianças já sabem de memória, isso vai permitir que eles/as se concentrem em questões como: de que jeito a palavra está escrita, com quantas e quais letras, etc. poderão ser propostas atividades como: letras de músicas preferidas dos alunos/as, adivinhações para produzir um livrinho, poemas para organização de uma coletânea, inclusive na língua materna. Sobre o alfabeto, foi importante explicitar que é fundamental no processo de alfabetização, pois a criança precisa ter conhecimento das letras, não é possível falar sobre algo que não se conhece. Daí que é preciso cada aluno/a ter um alfabeto colado no caderno e um alfabeto móvel, além do fixo na sala de aula. Em relação à produção de bons textos, discutimos o significado de escrever bem – que a ideia é produzir textos corretos sim, mas, sobretudo bem escritos, que é resultado da leitura de muitos e diferentes textos, por isso é preciso que o trabalho de produção deles leve em conta que a leitura é condição para a escrita de textos, pois não se pode escrever bem sem ter um amplo conhecimento de textos lidos e ouvidos, daí que a leitura deve ser feita diariamente, tanto pelo aluno (textos que ele já sabe de memória) como pelo/a professor/a. Os textos conhecidos precisam ser diversificados para que os alunos/as aprendam um pouco sobre os vários gêneros: cartas, bilhetes, poemas, listas, receitas, músicas, avisos, placas, etc. Um ponto de partida explicitado em todo o desenvolvimento da disciplina foi a idéia de que é possível produzir textos sem saber escrever, para isso, a criança precisa ser apoiada, ajudada e incentivada, além do mais, os textos podem e devem ser cuidadosamente revisados durante e após a escrita numa excelente atividade coletiva. Uma outra sugestão foi considerar que as propostas iniciais de produção de textos podem se apoiar em outros textos, como por exemplo: transformar um gênero em outro, por exemplo, um conto de mistério para uma entrevista ou a atividade de paródia, inclusive desenvolvida através da música: Como pode um peixe vivo viver fora d’água fria. O jogo oral onde o professor, a professora inicia um texto para os alunos, alunas continuarem: Era uma vez… Antigamente no tempo em que os bichos falavam ou ainda, escrita de textos em parceria que também foram desenvolvidas na sala de aula, conforme sugere SOLIGO (1999). Procuramos discutir o sentido da leitura diária feita pelo professor ou professora, que é importante porque por meio dela o aluno, a aluna pode entender mais como as palavras são constituídas, utilizadas, quais são as suas características e isso ajudará em seu processo de criação de seus próprios textos. Adotamos a perspectiva apontada por SMITH (1999, p. 11) de que: O professor não precisa de conselhos, ele precisa compreender. É ele que tem que tomar decisões. Daí ser necessário se apropriar das habilidades que envolvem a leitura em voz alta, ter clareza do significado desta ação para progressivamente preparar as crianças, pois SOLÉ (1998, p. 28), adverte que: Esta atividade só pode ser realizada se se acompanhar com atenção o que o outro está lendo, se se for um “escutador ativo” como condição para depois ser um leitor ativo. Discutimos diariamente com os docentes do Projeto Açaí, as possibilidades de tornar as alunas e alunos bons leitores e desenvolver, muito mais que a capacidade de ler, o gosto pela leitura e um compromisso com ela – daí ser necessário incentivá-los, pois aprender a ler requer esforço contínuo, até porque uma prática de leitura que não possibilita o desejo, a vontade de ler, não pode ser considerada uma prática pedagógica eficiente. Às vezes durante a noite, enquanto estávamos planejando as atividades para o dia seguinte, vários alunos se aproximavam: Mojagara Surui, Ibebear Suruí, Antonio Suruí, Alexandre Suruí, Garixamã Suruí, Naraykopega Suruí, Adilson Cinta Larga, Augusto Cinta Larga, Anemã Cinta Larga. Ficavam observando ou fazendo anotações e comentavam sobre o que eu fazia. Nessas ocasiões, falávamos sobre como é interessante para o trabalho docente, o planejamento e que, especificamente na alfabetização pode-se pensar em situações de leitura para alunos/as que estão ingressando no processo: é possível ler quando ainda não se sabe ler convencionalmente, que nesta fase, é interessante ler diferentes tipos de textos, com variadas situações de comunicação – naquele dia tínhamos lido o texto da onça – bilhete e o texto mítico – A criação da Humanidade e que mesmo sem saber decodificar o texto, o aluno/a utiliza estratégias antecipatórias para saber o que está escrito, como por exemplo, o texto em alemão que eles conseguiram discutir, mesmo sem saber alemão. Por isso, no planejamento devemos colocar atividades de leitura que tenham ligação com aquelas que as crianças utilizam em seu cotidiano, daí a importância de se levantar os portadores de textos existentes na aldeia, pois a criança poderá estabelecer interessantes correspondências entre os mesmos. Então devemos oportunizar as crianças o conhecimento de uma variedade de textos impressos, de escritas sociais e incentivar a cooperação entre eles/as, pois favorece a troca do conhecimento, possibilitando a prática do letramento SOARES (2001). Muito aprendi neste contato com as professoras e professores indígenas. Considero que foi um dos grupos mais desafiadores que já conheci, exigentes, doces, muito especiais. Suas formas de falar, colocar questões, foram fundamentais e contribuíram em relação às mudanças e alterações no planejamento. Gostava de estar com eles, ouvir suas narrativas sempre tão carregadas de significado, de sentido, penso que o mais fantástico dessa experiência foi conviver com companheiros tão comprometidos, que levam muito a sério o processo de formação que estão vivenciando. Foi uma linda lição! Como Telma Weisz, acredito que: Ao aprendiz como sujeito de sua aprendizagem corresponde, necessariamente, um professor sujeito de sua prática docente.
BIBLIOGRAFIA BRASIL, Secretaria de Educação Fundamental. PROFA – Programa de Formação de Professores Alfabetizadores. Rosaura Soligo (org.). Brasília: MEC, 2001. FERREIRO, Emilia; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. FERREIRO, Emília. Passado e Presente dos verbos ler e escrever. São Paulo, Cortez, 2002. ______________. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo, Cortez, 1989. ______________. Com todas as letras. 4. ed. São Paulo, Cortez, 1993. SMITH, Frank. Leitura significativa. 3. ed. Porto Alegre, Artes Médicas, 1999. SOLIGO, Rosaura. Escrever é preciso. IN: BRASÍLIA. Ministério da Educação. Secretaria de Educação à Distância. Cadernos da TV Escola. Português. Volume 2. 1999. SOARES, Magda. Letramento: um tema em três gêneros. Belo Horizonte: Autentica, 2001. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. 6. ed. Porto Alegre: Artmed, 1998. WEISZ, Telma. O diálogo entre o ensino e a aprendizagem. São Paulo: Ática, 2000. |
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