Oração pelas cidades e por cidadãos
por Ana Marina Godoy
Ano III n.42 fevereiro de 2004 como www.partes.com.br/ed42/turismo1.asp
Oração pelas cidades e por cidadãos
A cidade virou um tabuleiro: limites – abertos, com escolhas para quem não quer as regras: sair, não jogar, não participar… ficar à margem – onde viver é jogar e se joga para (poder) viver.
A cidade é mais que um fenômeno: é um ente. Mais do que uma criação ou arte humana – como gatos que derramam leite e desperdiçam, à toa, apaixonados pelas lambidas individualistas de ida com sede ao pote do chamado progresso -, é cenário da sinestesia intensa que acontece nesta pós-modernidade. Muito além das muralhas que cercavam os originais burgos europeus, quando ali era um útero, uma casa comum com pátios, sinônimo de solidariedade por objetivos comuns; corremos, de carro ou de bicicleta, motorizados ou não, num cotidiano uns contra os outros dentro dos limites do palco urbano, horizonte ideal de muitos interioranos e também de espécies de seres humanos que não mais se adaptam a outro habitat. A cidade virou um tabuleiro: limites – abertos, com escolhas para quem não quer as regras: sair, não jogar, não participar… ficar à margem – onde viver é jogar e (não há como resistir ao trocadilho!) se joga para (poder) viver. Mundos paralelos existem. São até sonhados, falados, almejados, pregados, estudados, escritos, cantados…neste cenário onde o subjetivo impera e a imparcialidade é lei – mais pra uns que pra outros -, regras parecem se anarquizar e aquele ser natural que era o ser humano se esquece da essência, se torna histórico e virtual. A exploração do espaço é tecnológica, mas não sapiens; poluidora – sobre duas ou mais rodas – e estressante. Ser “café-com-leite” por alguns instantes só para –o ter humano – recarregar as baterias… necessidade de
evasão. Retiro. Aquele que nasce pela vontade divina como ser humano não tem mais tempo pra cuidar de si em todos os seus espectros, incluindo o psicológico e o espiritual. O capital é essencial; um passaporte para a vida. Mas até ele e o seu controlador se tornaram cibernéticos. Cada um por si e Deus por todos… a lei da cidade, mesmo que ecológica e social…Falta estrutura física para ser. Respirar não é fácil. E mais difícil é abandonar, por um dia, todas as armas, escudos e armaduras (desta ou daquela marca, original ou nem tanto) de guerra: seja para deixar o carro em casa e se expor, ficar mais perto de seus semelhantes, ou seja, para abandonar
preconceitos e conviver com a sua própria face espiritual, percebendo a necessidade de colo divino. A guerra é contra o trânsito caótico e a favor de uma reeducação espiritual. Se retirar numa chácara, em praia deserta ou dentro de uma floresta num arquipélago é simbólico. A árvore, mesmo na aridez, é simbólica. A relação humano-divino é fruto semeado e almejado ser colhido, após os ciclos que a mãe-natureza exige, em abundância. Muito mais do que simples e imediatas válvulas de escape e pilhas para poder sobreviver uma semana, um retiro – mesmo que em seu quintal, sem o carro; um retiro universal do cotidiano barulhento daquela nossa aldeia – deve procurar significar um encontro para estimular ação em direção ao que, em geral, entende-se ser o bem e o bom. E isso precisa de Deus pra acontecer! É só olharmos o trânsito nas horas de rush e logo pensamos: “só um milagre pra mudar isso e me tirar daqui”. Mas acreditar no que não existe? Paradoxo: mundo que depende e faz o impalpável e não acredita no que não vê, mesmo sabendo ser necessário e saudável o acreditar, o apostar… afinal, estamos num jogo. Saber o seu limite mínimo e máximo para que a harmonia o faça acontecer sem grandes choques para seus participantes
é fugir de erros e involuções. Em curto prazo tudo deveria deixar de ser instantâneo para que possa persistir e evoluir. A embalagem do ser é importante: o ter humano. O conteúdo, é impossível não perceber, fica a critério e nas mãos de Deus. O caos é para os nossos sentidos. Mas, acreditemos e peçamos: que os céus estejam certos de nós, nos nossos engarrafamentos e acidentes de percurso. Que os anjos nos despertem desta maldição, ajudando a olharmos pra dentro: de nós, da sociedade, da cidade.
As pessoas têm limites, espaciais e temporais. A cidade, como expressão de um conjunto de pessoas, também: um ente próprio que ganha, faz vida.
Melhor se continuamente criado e recriado com arte, amor, planejamento e detalhado cuidado. Para todos. Afinal, neste jogo, trafegando caminhos similares, todos somos um. Transitar com as bênçãos divinas pela vida, harpas e violinos tocando: festas nos céus, anjos entre nós. Rezemos.
ANA MARINA GODOY