Francisco A. de Arruda Sampaio
A descoberta do código genético foi uma das maiores conquistas da humanidade em todos os tempos. Afinal, conhecendo-se o código, é possível decifrar as informações que levam à formação do nosso corpo e regulam seu funcionamento.
Conhecer o funcionamento fundamental do corpo abre um leque quase ilimitado de possibilidades de desenvolvimento de novos remédios, cura para doenças até agora incuráveis, melhoria da qualidade de vida, aumento da longevidade etc…
Mas, para se atingir essas metas, é necessário ainda usar o código para identificar os mais de 100 mil genes que cada pessoa carrega no núcleo de cada uma de suas células! Em outras palavras, é necessário ter a decodificação completa do genoma humano. Esta tarefa é enorme, depende de muitos recursos para manter grandes equipes altamente capacitadas, equipamentos automatizados de altíssima tecnologia e computadores muito rápidos.
Em vista dos benefícios potenciais e dos custos envolvidos, os governos dos Estados Unidos, Canadá e da maioria países europeus decidiram financiar o Projeto Genoma Humano (PGH), uma iniciativa pública internacional para decifrar todos os genes humanos, num prazo de uma década. Algumas instituições de países “emergentes”, entre elas algumas do Brasil, participam marginalmente da iniciativa.
A indústria farmacêutica, por outro lado, percebeu o enorme potencial econômico de deter este conhecimento e passou a investir pesadamente na identificação e decodificação dos genes “mais lucrativos”. Isto é, genes que determinam doenças crônicas e doenças fatais que afetam a população de maior poder aquisitivo. Alegando a “defesa da propriedade intelectual”, a indústria farmacêutica conseguiu patentear um grande número de genes humanos (e de outros organismos também).
Patentear um gene significa patentear uma informação biológica com milhões de anos de evolução natural e que está presente em todas as pessoas. Significa também que qualquer desenvolvimento de remédios e terapias que use esse conhecimento deverá pagar “royalties” ao detentor da patente! Em outras palavras: você não é mais dono dos seus genes!
O debate sobre a ética e a legalidade do patenteamento de genes já tem mais de uma década e, até poucas semanas atrás, os governos dos países desenvolvidos haviam se posicionado a favor da indústria farmacêutica. O argumento dado é o clássico: “a indústria farmacêutica vive do lucro, sem lucro não haveria o desenvolvimento de novos medicamentos, novos testes de laboratório e novas terapias”. Também alegava-se que o número de genes patenteados era relativamente pequeno e que o Projeto Genoma Humano tornaria pública as informações obtidas.
Tudo mudou quando surgiram empresas interessadas em explorar o genoma “no atacado”, em particular a CELERA, fundada por um ex-pesquisador do Projeto Genoma Humano e por grandes investidores. A estratégia da CELERA é concluir o sequenciamento do genoma, patenteá-lo e vender essa informação para a indústria farmacêutica e instituições de pesquisa. Caso a política de concessão de patentes permaneça como é, em pouco tempo a Microsoft seria uma microempresa perto da CELERA. Só para se ter uma ideia, o potencial de ganhos é tão grande que, no início do ano, a CELERA captou nada menos que 800 milhões de dólares no mercado de ações norte-americano.
Essa é uma perspectiva tão alarmante que, há algumas semanas, o presidente norte-americano Bill Clinton e o primeiro ministro inglês Tony Blair, os patronos e guardiões da livre iniciativa, deram uma declaração conjunta contrária ao patenteamento de genes “no atacado”. Clinton e Blair não estão preocupados com os problemas éticos da questão, apenas respondem às pressões de grupos empresariais que temem se tornarem reféns da CELERA e argumentam que o patenteamento “no atacado” leva ao monopólio.
Porém, uma análise mais detalhada da questão revela que o problema é mais complexo. Afinal, o que é que estas empresas estão patenteando? A informação genética (o nosso genoma) sempre esteve aí, presente em cada uma das células do nosso corpo. Com a técnica apropriada, qualquer um pode ler o seu conteúdo. Não há nenhuma inovação que mereça ser remunerada como “propriedade intelectual”. Além disto, o mero sequenciamento do material genético (que é o que a CELERA e o Projeto Genoma Humano estão fazendo) apenas identifica os genes e sua sequência nos cromossomos humanos. Nada ou quase nada se sabe sobre a função e o funcionamento da enorme maioria dos genes descritos (além disto, para vencer a “corrida”, a CELERA adota padrões de qualidade de análise muito inferiores aos do Projeto Genoma Humano – uma média de 3,3 verificações de cada sequência genética contra 10 verificações no PGH).
Para se obterem os benefícios esperados do conhecimento do nosso genoma, é necessário superar várias outras etapas, a saber:
identificar a proteína que cada gene codifica;
identificar a função de cada proteína;
identificar quais os mecanismos que induzem e que inibem a produção de cada proteína;
desenvolver terapias, procedimentos de diagnóstico e medicamentos a partir dessas informações; e
testar a eficácia e a segurança das terapias e medicamentos.
Somente após se completarem todas estas fases é que se pode dizer que a descrição do genoma humano trouxe benefício. Somente neste momento é que se pode alegar que houve “invenção” ou “inovação”. Todas as etapas anteriores às de desenvolvimento são importantes, indispensáveis, mas se restringem à mera identificação e descrição de informações que qualquer pesquisador, com treinamento e equipamentos adequados, pode obter por conta própria.
Outorgar patentes aos laboratórios farmacêuticos que desenvolvem medicamentos é moral e eticamente duvidoso, porém amplamente aceito em vista do argumento de que a “invenção” e a “inovação” constituem propriedade intelectual e merecem remuneração. O domínio privado do genoma humano (ou de qualquer outro organismo) é uma questão totalmente diferente. É inaceitável sob qualquer ponto de vista, exceto, é claro, sob a óptica do mais selvagem capitalismo (ou sob a óptica dos interesses da CELERA, evidentemente).
Francisco A. de Arruda Sampaio é biólogo, mestre em Ecologia e Recursos Naturais e autor da Coleção Caminhos da Ciência.
Publicado no Correio da Cidadania, 13 a 20 de maio de 2000
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