Entrevistas Mulher mulheres

Mulher, índia, defensora da natureza!

Eliane Potiguara é fundadora e Diretora –Executiva do Grumin/Rede de Comunicação Indígena sobre Gênero e Direitos. Professora, socióloga, militante e escritora indígena Potiguara. E-MAIL: elianepotiguara@terra.com.br

1. Quem é Eliane Potiguara? 
Sempre que alguém me pergunta quem eu sou, existe quase que uma obrigatoriedade de você ter que responder a cerca de seus títulos, seu estado civil, idade, o que você faz, o

Eliane Potiguara é escritora e professora indígena, 54 anos, conselheira do Inbrapi (Instituto Indígena Brasileiro para a Propriedade Intelectual).Coordena o Grumin/Rede de Comunicação Indígena.
Autora do livro “METADE CARA, METADE MÁSCARA” editora Global, Série Visões Indígenas, coordenada por Daniel Munduruku, escritor indígena.

que fez, o que pretende fazer, onde nasceu, quem são seus parentes? Eu hoje tive vontade de falar de outra coisa. Eu sempre tive que transpor obstáculos para sobreviver. Toda minha família indígena, extremamente empobrecida, imigrou das terras indígenas paraibanas para Pernambuco por ação na neo-colonização do algodão por volta de 1922. Em pouco tempo, imigrou num navio sub-humano para o Rio de Janeiro. Nasci ali, num gueto formado por indígenas e judeus imigrantes da 2ª guerra Mundial que se tornaram bananeiros, carvoeiros. Minha família morou literalmente nas ruas, no Mangue na área de prostituição perto da Central do Brasil, mas ninguém participou desse contexto. Eu dormia num baú que um português deu a gente, por causa das ratazanas que vinham morder meus pés. Nenhum parente meu ficou na área indígena, por medo e vergonha! O falecido Sr. Marujo, um índio muito velhinho e cego foi que se lembrou dessa história quando lhe perguntei em 1979, na Paraíba. As quatro irmãs, um irmão e mãe fugiram porque o pai delas havia desaparecido e elas estavam sendo ameaçadas.Vovó já saiu grávida, vitimada com 12 anos!

Fiquei presa vários anos num quarto na minha infância e quando via o sol desmaiava. O cômodo era sombrio, o banheiro imensamente sujo, cheio de insetos e cheio de limo e fora da casa. Todos os moradores dali utilizavam aquele fétido banheiro público!Tudo era da pior qualidade. Eu tive anemia profunda e tuberculose. Tive tumores no super-cílio e no mamilo, curados com visgo de jaca, teia de aranha e minhoca amassada, mistura essa aplicada por muitas e muitas vezes para a cura. Tenho esse cheiro até hoje no meu olfato!

A única coisa diferente era a educação, a espiritualidade e o amor que eu recebia de minha avó, mãe e tias indígenas. Elas me cobriam de amor, afeto e me protegiam contra a sociedade, que as discriminavam por serem diferentes. Por isso fiquei presa muitos anos, naquele cômodo escuro. Aprendi a escrever ali mesmo. Foi ali que me tornei escritora com 7 anos, escrevendo as cartas que vovó analfabeta ditava pra mim. Eram histórias de muita dor, saudade, abandono, discriminação racial, social, intolerâncias. Ela me chamou de Potiguara, porque ela conhecia a cura pelas ervas, ensinadas pelos seus pais. Hoje meu nome de escritora é Eliane Potiguara, reforçado pelas lideranças indígenas que participaram na luta do movimento indígena nesses últimos 30 anos.

Quando fui à escola não entendia porque riam de mim e de vovó que todos os dias vendia bananas na porta da escola! Ali comecei a me sentir diferente das crianças e adultos. Minha avó bebia e eu chorava muito porque não conseguia entender nada do que a professora ensinava e porque vovó bebia e se embalava no fumo de rolo. Minha escola era outra!Anos mais tarde, pisei tapetes vermelhos na Europa e pisei na lama encharcada de sangue-sugas literalmente e na vida! Mas sou a mesma pessoa que vovó criou. A pobreza batia à nossa porta e minha família não conseguiu ficar comigo quando fiz 8 anos. Fui para a Funabem, foi um choque, eu me perdi no tempo e no espaço, mas fiquei muito pouquinho tempo, porque logo minha família banhada em lágrimas me retirou de lá, quando me encontrou imunda, cheia de piolhos, chatos e fedendo como carniça e em pele e osso, roupa rasgada, descalça, quase morrendo de anemia. Eu sou Eliane Potiguara, uma mulher que muitos pajés disseram que ando com a força da ancestralidade e da espiritualidade à minha frente e que de minha boca, palavras ecoam abrindo caminhos, despertando consciências. Isso me foi dito, não são minhas palavras. Nunca havia falado isso até hoje, pois eu achava que se falasse, parecia pretensão de minha parte. Mas nos meus 54 anos de idade, mãe e avó, está na hora de falar.

2. Você está lançando seu segundo livro “Metade Cara, Metade Máscara” de quais assuntos trata nesta obra? Qual é o objetivo da obra?
O livro fala de amor, relações humanas, paz, identidade, histórias de vida, mulher, ancestralidade e família. É uma mensagem para o mundo, na medida em que descreve valores abafados pelo poder dominante e, quando resgatados, submergem o self selvagem, a força espiritual, a intuição, o grande espírito, o ancestral, o velho, a velha, o mais profundo sentimento de reencontro de cada um consigo mesmo, reacendendo e fortalecendo o eu interior, contra uma auto-estima imposta pelo consumismo, imediatismo e exclusão social e racial ao longo dos séculos.

O texto discorre sobre a luta do movimento indígena nacional/ internacional, da imigração indígena por violência à sua cultura e conseqüências. O papel fundamental da mulher indígena no contexto cultural e sua contribuição na sociedade brasileira é um expoente. Poeticamente, conta as dores das mulheres e seus desejos mais íntimos.

Links sobre direitos indígenas como propriedade intelectual, conhecimentos tradicionais, meio ambiente, terra e território, biodiversidade, espiritualidade, contribuição da ética e cosmovisão indígenas para um novo homem/mulher são destacados neste livro em forma de histórias, cânticos, sussurros e gritos. Essa criação vai mexer com seu imaginário e fazer você viajar nas profundezas da mente em prol de mudanças concretas.

3. Há outra obra em processo?
Sim, pretendo aprofundar mais o tema sobre a construção do “pensamento indígena brasileiro”, para contribuir com a construção da auto-determinação do povo indígena nacional que há 5 séculos está entrelaçado nas amarras do paternalismo oficial, religioso, institucional. Tudo isso pra mim é uma forma de discriminação contra a capacidade da gestão indígena. O código civil dizia que os indígenas eram incapazes. Isso acabou na teoria, mas na prática é uma realidade, por isso a importância da educação diferenciada para o crescimento dos povos indígenas e o estabelecimento da Universidade Indígena, num futuro breve! Continuo estudando muito para elaborar novas abordagens. Na juventude me formei professora com os esforços das vendas de bananas que vovó fazia. Muito importante também é me reportar ao discurso oral de minha família analfabeta. Tudo que sou devo à minha família indígena, mesmo fora das terras tradicionais. Por outro lado, a inspiração, os sonhos que determinam a minha criação literária, a minha espiritualidade e fortalecimento de minha ancestralidade, me direcionam para uma nova obra, se nossos guias espirituais e o Grande espírito permitirem.

4. Ser mulher, ser índia. Qual o desafio desta dupla identidade?
Fortalecer essas identidades para mim foi muito difícil, principalmente porque a maioria das pessoas de minha família eram mulheres. Eu digo eram, porque minha família era muito pequenininha, hoje só tenho uma tia, já doente.Todos faleceram, inclusive mamãe, “a sacerdotiza das águas”. Imaginem querer ser mulher num contexto altamente discriminatório social e racial e de gênero e etnia!!!! Mas a força das mulheres da minha família, que também andavam com a velha guerreira à sua frente, e que possuía o poder da palavra transformadora que motivava mentes, tudo isso construiu para a mulher que sou. Eu tenho um texto chamado PELE DE FOCA, inspirado na escritora Clarissa Pinkola que é um desabafo sobre ser Mulher, na sociedade que impõe valores adversos. O texto está no meu site pessoal http://www.elianepotiguara.org.br .
Ser mulher índia, para mim é um orgulho, pois devemos sempre assumir nossa etnia e não nos envergonharmos, como queriam os colonizadores. Nunca fomos vergonha nacional para os jesuítas e ideologicamente nunca fomos objeto de cama e mesa para os capitães-de-índios, apesar de muitas mulheres terem suas vidas ceifadas por eles. A colonização é longa, mesmo nos tempos atuais. Desde as idéias abertas, libertárias e transformadoras do filósofo Sócrates, que viveu 399 anos antes de Cristo até hoje, não conseguimos mudar o ranço do poder pátreo e implantar a verdadeira democracia, a verdadeira paz através do diálogo,compreensão e tolerâncias. Fala-se muito na construção da ética, da paz, da igualdade social, racial e de gênero. Mas muita coisa fica na teoria quando esbarra no poder, no capital, isso todo mundo está cansado de saber.

Falo no meu livro “Metade Cara, Metade Máscara”, da dualidade intrínseca no ser humano que enfrenta a todo momento o predador natural de sua psique: o “self selvagem”, o lado intuitivo, o libertador e o “ego”, o ser humano egoísta, que constrói “a mais valia”, o lucro fácil, o “passar por cima do outro”, desrespeitando a verdadeira ética humana. E o papel da mulher indígena na construção de um novo homem/nova mulher na sociedade brasileira precisa ser uma realidade a ser reconhecido e assimilado. As mulheres indígenas vem beijando as feridas do mundo para essa construção.

Motivada pela sabedoria de vovó, há 28 anos atrás visitei pela primeira vez várias etnias indígenas, isso motivou a criação do Grumin/Grupo Mulher -Educação Indígena que trabalhava para o empowerment da mulher indígena através de projetos de capacitação e geração de rendas. Não existiam Ongs. Isso contribuiu para a elevação da sua auto-estima contra o sistema opressor. Hoje o Grumin é a Rede de Comunicação Indígena.

Há muito tempo tenho dito em meus textos: “Mulheres indígenas, construam suas organizações mesmo dentro de suas casas. O meu trabalho até hoje nunca foi construir o materialismo e sim a filosofia para a construção de uma qualidade de vida digna para Povos Indígenas, por isso políticas públicas do governo são altamente positivas para essa dignidade, além da demarcação das terras, reconhecimento do território ancestral que define a cosmovisão indígena.

Construir as identidades mulher e indígena é condição “se ne qua non” para construção de outras identidades como escritora, juíza, professora,esposa, mãe, etc… o que muitas mulheres indígenas estão à busca hoje.

5. Em que estágio encontra-se a luta dos povos indígenas no Brasil? 
Ao meu ver, a luta dos povos indígenas brasileiros esteve muito atrasada em relação à luta indígena dos povos Norte-Meso Americanos. Basta ver que o Fórum Permanente para Povos Indígenas criado na Onu, conquista nossa (ali também estive e outros indígenas brasileiros!) não possui um representante indígena brasileiro, ainda, enquanto todas as cadeiras estão representadas por sua regiões e indígenas ali estão sentados. Porquê será que o indígena do Brasil não está ali?

Tudo inicialmente começou com os jesuítas e donatários das capitanias hereditárias, apesar da Bula papal de 1337, de Urbano da Espanha , que já proibia a escravidão indígena desde aquela época. Em 1566, Mem de Sá cria o cargo capitão-do-índio, em 1759. Francisco Xavier, irmão do Marquês de Pombal, cria os diretor-do-índio, em face da ” brutalidade natural e manifesta ignorância indígena” (quanto racismo!). Em 1910, é criado o SPI (Serviço de Proteção do Índio). Esse serviço pertenceu inicialmente ao Ministério do Trabalho (claro, os índios eram mão de obra escrava!), Indústria e Comércio. Em 1934 pertenceu ao Ministério da Guerra e depois da Agricultura, nesse processo e encima dessas ideologias, foram criados os cargos de Chefe de Posto Indígena. O cacique foi criado nesta perspectiva também. Em plena ditadura militar, 1965, foi criada a Funai que esteve na maior parte do tempo nas mãos de militares. Essa política sempre foi a mesma: a tutela, a paternalização, mesmo no governo atual e com as atuais demarcações de terras indígenas já vitoriosas pelo nosso Presidente Lula da Silva. Há de se fazer essa leitura, por favor!!! Onde estavam os pajés, as pajés, os guerreiros autênticos, as mulheres guerreiras, os velhos, as velhas???? Abafados pelo poder!

Se o governo atual pensar nesse caminhar histórico, chegará a conclusão que alguma coisa está errada!

Políticas públicas, cotas para povos indígenas, reconhecimento histórico da cosmologia e territorialidade indígenas, fortalecimento dos líderes de base, fortalecimento das organizações indígenas, fortalecimento das candidaturas indígenas, inserção de povos indígenas em todos os programas de governo, fortalecimento das estratégias para a Educação, saúde e desenvolvimento indígenas diferenciados, etc…etc…etc…. são caminhos concretos para a verdadeira construção da dignidade dos povos indígenas e o fortalecimento da luta indígena no Brasil. Indígenas não podem mais passar o pires, indígenas não podem mais aceitar paternalismos, indígenas estão paulatinamente construindo a política indígena brasileira, começou com a vitória na Constituição de 1988. Agora o novo Estatuto do índio precisa ser uma realidade. Tudo faz parte de processo histórico e certamente a vitória chegará, apesar do atraso que considerei no início do parágrafo.

Como tenho falado, indígenas precisam ser vistos como as primeiras nações desse extenso Brasil, respeitados e nunca vistos empunhando bordunas e fazendo Marchas para a constituição de seus Direitos Humanos. A verdadeira imagem indígena e intrínseca é de paz, de amor, de equilíbrio com a natureza, patrimônios éticos relativos aos conhecimentos tradicionais indígenas.

A entrevista acima foi concedida, por e-mail, para o editor da revista P@rtes, Gilberto da Silva no inicio de novembro.

Revista Partes – Ano V – novembro de 2004 – nº 51

Deixe um comentário