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Deletar a Cracolândia não é solução

Ipojucan Calixto Fraiz, médico e doutor em Sociologia
Crédito: Divulgação

Ipojucan Calixto Fraiz*

No filme Estamira, uma portadora de transtorno de saúde mental vive da coleta do que pode ser aproveitado do monturo de coisas que a sociedade de consumo rejeita. As cores de Estamira se confundem com as cores das montanhas de lixo, mas o seu discurso desviante denuncia as contradições da norma social. Essas observações podem servir para uma reflexão sobre o tratamento que se tem dado ao que se convencionou chamar de Cracolândia. Tratar aquele espaço como um depósito de gente e tentar retirar da paisagem a desarmonia da Cracolândia, por meio de destruição e demolição, pode assemelhar-se à ideia de que o lixo deve ser afastado dos nossos olhos.

cena de Estamira

Da mesma forma que nossa sociedade, pautada na racionalidade do consumo, produz excedentes que vão para o lixo, queremos esse lixo longe da nossa rua. Podemos pensar que tratamos da mesma forma aqueles que, em não atendendo à razão de ser da sociedade, são considerados desviantes e devem ser excluídos da nossa convivência. Estamira está posta pela sociedade como um rejeito humano e a ela resta viver do lixo. Tratar os usuários ou dependentes de uma droga chamada crack (que, aliás, não foram eles que inventaram) como rejeito social é buscar a forma mais grave de violência que o Estado pode fazer, que é a supressão do sujeito e de seus direitos. Buscar na Justiça autorização para internação compulsória de forma indiscriminada é tentar dar ao Estado a possibilidade do domínio pleno sobre os indivíduos. Isso só se justifica se negarmos as subjetividades, retirarmos todos os direitos humanos e tratá-los como objetos.

Sabemos que o tema é complexo, mas a sociedade não pode dar ao Estado delegação para reduzir as pessoas à categoria de problema ou de lugar indesejável e excluí-las da paisagem. Ocorre que, no Brasil, a sociedade está cada vez mais servindo ao Estado e não o contrário, como é de se esperar. Cabe às políticas públicas encontrar soluções que atendam aos interesses de toda a sociedade, mas em particular a cada um dos sujeitos envolvidos. A solução é complexa, mas é possível. Deve-se partir do princípio inalienável de que os direitos de todos devem ser preservados. Assistir, escutar e apoiar vêm antes de reprimir, excluir e retirar direitos.

A Política Nacional de Saúde apresenta mecanismos adequados de abordagem dos transtornos mentais e da dependência de drogas. Porém, cabe aos poderes locais a responsabilidade de mobilizar competências de gestão que permitam tratar o problema de forma respeitosa e humana e não buscar, por atalho, soluções drásticas que, além de nada resolverem, acentuam a exclusão social e a marginalização daqueles que já estão à margem. A insensibilidade dos que chegaram ao poder e o exercem pode levar a soluções autoritárias, como por exemplo transformar o instituto da internação compulsória em regra. Qualquer um de nós pode estar nas mãos de um Estado autorizado a cercear direitos fundamentais da condição humana, mas, por enquanto, é urgente olharmos por aqueles que, por serem os mais vulneráveis, serão os primeiros a voltar aos antigos manicômios, que querem reinstalar. Teremos uma reedição da realidade descrita por Daniela Arbex no livro Holocausto Brasileiro se não soubermos colocar ao Estado os limites que a cidadania em cada um de nós exige.

 

Ipojucan Calixto Fraiz, médico e doutor em Sociologia, é professor do curso de Medicina da UFPR e da Universidade Positivo (UP).

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