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Mix de sentimentos

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MIX DE SENTIMENTOS

Margarete Hülsendeger

 

A violência destrói o que ela pretende defender: a dignidade da vida, a liberdade do ser humano.

João Paulo II

 

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Margarete Hülsendeger é Física e Mestre em Educação em Ciências e Matemática/PUCRS. É mestranda em Teoria Literária na PUC-RS

Quando o telefone tocou, levei poucos segundos para reconhecer a voz. Era uma amiga muita querida que é, como eu, professora. Estava ligando para contar que tinha sido assaltada na frente da casa da mãe, quando eram apenas 12 horas da manhã. O bandido levou o carro, o notebook, provas corrigidas e os cadernos da escola.

No primeiro momento não disse nada. Quando, finalmente, superei o susto, minha principal preocupação foi saber se ela estava bem, se o assaltante não a tinha ferido. Graças a Deus, não houve qualquer tipo de agressão física, no entanto, era claro que a agressão moral ainda não havia sido superada. O abalo fora tão grande que, ao longo da conversa, ela ficava repetindo a mesma pergunta: “Por que comigo?”

É óbvio, que tentei acalmá-la, dizendo aquilo que todo mundo diz numa situação dessas: “Foram apenas bens materiais, o importante é que contigo tudo está bem. Pensa no risco que correste, esse bandido podia ter te machucado”. No entanto, a verdade é que, enquanto dizia tudo isso, sentimentos conflitantes começavam a se formar dentro de mim. Eles eram um misto de revolta, pena e vergonha.

Revolta porque, querendo ou não, nos tornamos prisioneiros dentro de nossas próprias casas. Saímos para trabalhar de manhã sem saber se retornaremos vivos para os nossos lares. Vivemos sempre com medo de sermos as próximas vítimas, e com isso desconfiamos de tudo e de todos. Pagamos impostos e não recebemos o que nos cabe em segurança. Como não se revoltar? Como não querer que todos os bandidos tenham o troco que lhes é devido? Passamos a ter dificuldade em distinguir entre o desejo de justiça e o de vingança.

Pena porque estou falando de uma professora, que trabalha em dois colégios para dar conta de suas despesas e ter assim uma vida digna. De alguém que luta diariamente com as dificuldades de uma profissão mal remunerada e pouco respeitada. Uma pessoa que, ao ver-se na iminência de perder o carro – ainda por pagar –, estende a chave ao bandido e pede apenas que ele deixe o seu material de trabalho. É impossível não sentir tristeza, pois o que levou apenas poucos minutos para ser roubado era produto de muito esforço e sacrifício.

E chego, finalmente, à vergonha. Sim, vergonha porque, em meio à revolta e à pena, também senti um enorme alívio. Não pude evitar o pensamento de dar graças por não ter sido eu a vítima. A sensação era de ter escapado de algo que estava destinado a mim. Parece estranho, mas talvez seja assim que muitas pessoas se sentem quando veem sua casa sendo poupada quando a do vizinho foi destruída por um incêndio ou qualquer outro tipo de tragédia.

Quero acreditar que esse sentimento seja uma questão de instinto de sobrevivência. Todos querem estar protegidos das desgraças ou dos problemas que a vida pode impor e é difícil não sentir alívio quando isso acontece. No entanto, também é verdade que esse mesmo sentimento acaba gerando outro, o da vergonha de termos sido tão egoístas. Afinal, quando deveríamos estar pensando no bem-estar do próximo, estamos preocupados apenas com a nossa segurança e conforto.

Assim, quando desliguei o telefone sentia-me não só abatida, mas também muito culpada. É revoltante a sensação de insegurança permanente, que nos faz olhar para os lados toda a vez que saímos de casa. É trágica a ideia de sermos apenas mais um número nos quadros de estatística dos órgãos de segurança, a cada dia mais impotentes diante da escalada da violência. E, finalmente, é horrível reconhecer que, apesar da revolta e da pena, o sentimento mais forte sentido por mim era o de alívio por não ter sido eu a vítima.

O fato é que com a minha amiga não ocorreu nada de excepcional. Ao contrário. Se ainda não aconteceu comigo ou com você é apenas uma questão de tempo que venha a acontecer. De qualquer maneira, muito provavelmente ela nunca mais verá o carro, o computador e o seu material de trabalho. Contudo, mesmo que todas as essas coisas sejam apenas isso, “coisas”, nada e nem ninguém conseguirá devolver os sentimentos de tranquilidade e confiança que ela perdeu no final daquela manhã em frente à casa de sua mãe.

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