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Saberes docentes e proposta curricular: construções e (re) construções conceituais

Elaine Luciana Silva Sobral

publicado em 23/01/2008

 

Elaine Luciana Silva Sobral é Professora, coordenadora e pesquisadora da rede municipal de ensino da cidade de Ceará Mirim-RN. Mestranda do PPGED/UFRN. Orientanda da Profª. Drª. Denise Maria de Carvalho Lopes.

No campo da educação infantil e de suas especificidades emerge a relevância de se compreender as singularidades de um currículo para instituições – creches e pré-escolas, bem como os saberes requeridos aos profissionais envolvidos nessa educação. Nesse contexto, estamos realizando investigação sobre saberes docentes requeridos na construção de uma proposta curricular para a educação infantil, através de uma pesquisa-ação em uma instituição pública municipal de Ceará-Mirim/RN.

No percurso da investigação fomos percebendo a dificuldade, manifestada pelos sujeitos da pesquisa, de sistematização de um conceito elaborado de currículo/proposta curricular. Para Vigotski (2005) isso se explica pelo fato de que ocorre muitas vezes uma discrepância entre a utilização de um conceito numa situação concreta e a sua definição verbal, mesmo no pensamento do adulto em níveis muito avançados. Desta forma, realizamos uma primeira análise destas entrevistas, selecionando alguns trechos que nos davam pistas de suas concepções sobre currículo/proposta curricular. E através da realização de seminário de estudo reflexivo analisamos estes trechos e buscamos sistematizar o conceito de currículo/proposta curricular junto ao grupo, tendo em vista possíveis construções e (re) construções conceituais individuais e coletivas.

Neste artigo abordaremos as relações entre saberes docentes relativos ao conceito de currículo/proposta curricular e as concepções teóricas de autores como Moreira (1999); Kramer (1999); Moreira e Silva (2005); Silva (2006); Ribeiro (2000), entre outros, que defendem a participação de todos os sujeitos da escola na construção e efetivação de um currículo/ proposta curricular.

 A partir da problematização de uma análise das entrevistas com o grupo, percebemos uma demasiada importância aos conteúdos, visto que, todas as falas das entrevistas faziam associação entre currículo e lista de conteúdos. Exemplificando:

[…] E a Proposta Curricular, não seria mais pra o conteúdo aplicado em sala, seria assim? Eu tenho muitas dúvidas sabe? O que a gente aplica na sala, é? […]. Seria o conteúdo que você vai aplicar, seria assim a Proposta Curricular? […].  (E);

[…] Proposta Curricular, pronto é assim, é como se, é tipo assim o que vai se passar pra criança, é… os conteúdos, eu vejo como isso, uma orientação, se trabalhar pras crianças, em termo de conteúdo. (L).

Apenas timidamente foram considerados outros aspectos relacionados ao currículo como a metodologia, as questões relacionadas ao desenvolvimento e aprendizagem e a avaliação, entre outros. Na maioria dos casos esses outros aspectos só eram lembrados quando provocados por questões como: “Além de conteúdos, que outras coisas precisam estar definidas na proposta curricular?” Como podemos ilustrar a partir desse fragmento de fala: “[…] A metodologia da escola tem que estar definida ‘né’? Na Proposta Curricular, eu acho que é isso.”(E).

Na busca de uma ressignificação e (re) construção do conceito de currículo, realizamos estudo e discussão de textos científicos sobre a temática. Para tanto, nos amparamos nos argumentos de Moreira (2001), que defende que o processo de elaboração de um currículo precisa ser pensado/discutido a partir de investigações sobre a prática curricular com os que nela atuam.

Utilizamos para discussão em grupo os textos de Santos e Paraíso (1996); Ribeiro (2000), que parecem ter contribuído para um exercício de (re) elaboração do conceito de currículo/proposta curricular do grupo pesquisado, embora reconheçamos que, partindo do pressuposto de que toda apropriação de conhecimentos é um processo de elaboração resultante de interações e mediações – pelos outros mais experientes e pela linguagem (VYGOTSKY, 1997), esse processo de formação de conceitos é dinâmico, não linear ou imediato e singular para cada um. Dessa forma, mediante as leituras e discussões dos textos nos seminários reflexivos, o grupo foi elaborando coletivamente e de forma oral, sínteses de conceito de currículo/proposta curricular, citamos como exemplo dessas elaborações:

Uma proposta com metas e ações a serem realizadas. A partir da necessidade da criança, uma orientação de como trabalhar, partindo do social – como a criança é em casa/ comunidade, considerando os aspectos motores, cognitivos, afetivos. São diretrizes que uma escola precisa ter para se desenvolver como um todo: conteúdos, habilidades, metodologia, avaliação, objetivos, projetos – a organização de tudo isso. Não é um documento permanente, mas sujeito a mudanças.

As metas a serem alcançadas, a definição de como avaliar, considerando o desenvolvimento infantil. Os conteúdos a serem aplicados, os métodos. Uma base, uma orientação para ajudar na aprendizagem dos alunos levando em conta a fase em que se encontram, com embasamento teórico. Uma proposta flexível contendo conteúdos e métodos a serem desenvolvidos no processo de ensino-aprendizagem direcionado ao desenvolvimento cognitivo e emocional da família-escola, respeitando a realidade de seu meio para um melhor embasamento avaliativo e produtivo.

Posteriormente, em outro seminário retomamos as discussões e os professores fizeram registros escritos individuais de seus conceitos de currículo até então construídos:

Currículo é um documento que auxilia a prática e é flexível, necessitando de modificações de acordo com as mudanças que vão surgindo. (Seminário reflexivo nº3).

É uma proposta que reorganiza e norteia todas as ações educativas que envolvem uma escola, sejam elas no âmbito pedagógico propriamente dito quanto as inter-relações de todos os envolvidos neste processo. (Seminário reflexivo nº 3).

Apesar da falta de identificação nesses registros escritos individuais, podemos perceber avanços no processo de formação de conceitos de currículo/proposta curricular. Mesmo compreendendo que os saberes docentes – como quaisquer outros – são elaborados/apropriados em mediação/em relação e, portanto, não são imediatos, levam tempo, já é possível perceber, após um período de investigação, indícios de reelaboração/ressignificação de saberes no coletivo, mas com repercussões individuais.

O que emerge desses achados são rupturas importantes com relação às ideias iniciais dos professores. Na perspectiva de Kramer (apud BRASIL, 1996) entendemos que o currículo/proposta curricular reúne tanto as bases teóricas quanto as diretrizes práticas nelas fundamentadas, bem como aspectos de natureza técnica que viabilizam sua concretização. Podemos apontar essa complexidade do currículo, enquanto não apenas “programa de conteúdos”, mas conjunto de concepções e ações que permeiam o trabalho pedagógico da escola, como um dos principais aspectos discutidos e envolvidos nesse processo de (re) construção conceitual vivenciado pelo grupo pesquisado.

Um segundo aspecto que se revela nas falas e registros dos professores, relaciona-se a instabilidade de um currículo documentado e a relação dialética entre documento e prática, considerando que uma proposta curricular não é só o documento onde se registram princípios teóricos, metas, objetivos, conteúdos, atividades a serem desenvolvidas na escola, mas, além disso, a realização mesma dessas definições no dia-a-dia da instituição.

Nos estudos de Moreira (1999); Moreira e Silva (2005); Silva (2006), acerca das teorias críticas e pós-críticas do currículo, temos discutido, para além das diferenças e debates que circundam estas teorias, a necessidade de problematização de um currículo como artefato cultural, isto é, como o resultado de um processo de construção social, que se configure como instrumento de construção, transformação de cultura e não apenas, reprodutor de cultura. Deste modo, entendemos que sendo uma construção social,

O currículo não pode ser compreendido sem uma análise das relações de poder que fizeram e fazem com que tenhamos esta definição determinada de currículo e não outra,[…] fazem com que o currículo inclua um tipo determinado de conhecimento e não outro. (SILVA, p.135, 2005).

Nesta perspectiva, outros aspectos ainda precisariam ser rompidos junto aos professores, para que se concretize no cotidiano das escolas, essa autonomia curricular de forma que se configure o global no local, sem esgotar especificidades do singular no plural. Consideramos que momentos como os aqui relatados de identificação, discussão e (re) elaboração de saberes docentes, são possíveis na medida em que se garanta espaços de mediações e interações. Pois entendemos que para elaborar – e, sobretudo, vivenciar – uma proposta pedagógica em que os professores atuem como sujeitos, é requerido a eles saberes próprios sem os quais  não têm condições de, verdadeiramente, participarem da construção e materialização de uma proposta.

Desta forma, identificamos neste estudo os saberes relativos ao conceito de currículo/proposta curricular como parte/base de um conjunto de outros saberes, e compreendermos o saber docente como “… um saber plural, formado pelo amálgama, mais ou menos coerente, de saberes oriundos da formação profissional e de saberes disciplinares, curriculares e experienciais”. (TARDIF, 2002, p.36). O saber dos professores é plural, compósito e heterogêneo, porque envolve, no próprio exercício do trabalho, conhecimentos e um saber-fazer bastante diverso. Além disso, é temporal, uma vez que é adquirido no contexto de vida e de uma história profissional. Assim, o saber não é uma coisa que flutua no espaço: o saber dos professores é o saber deles e está relacionado com a pessoa e a identidade deles, com as suas relações com os alunos em sala de aula e com os outros atores na escola (Ibid., 2002). Definimos aqui que o saber é uma relação, não há sujeito de saber e não há saber senão em uma certa relação com o mundo  – relação com o saber, consigo mesmo, com a linguagem e com os outros (CHARLOT, 2000).

E nesta perspectiva, acreditamos na possibilidade de um trabalho de formação de professores desenvolvido no cotidiano das escolas, que possibilite a construção e desconstrução de propostas curriculares, envolvendo inclusive a (re) elaboração de conceitos fundamentais, como o de currículo, aqui desvendado, além da formação de atitudes de autonomia frente às relações de poder, que parecem predominar na nossa sociedade global.

Referências  

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. COEDI. Propostas Pedagógicas e currículo em Educação Infantil. Brasília: MEC/SEF/DPE/COEDI, 1996.

CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber: elementos para uma teoria. Tradução de Bruno Magne. Porto Alegre : Artes Médicas Sul, 2000.

KRAMER, Sonia. Propostas Pedagógicas ou curriculares: subsídios para uma leitura crítica. In: MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. (org.). Currículo: Políticas e práticas. Campinas, SP: Papirus, 1999. (pp. 164-182).

MOREIRA, Antonio Flavio Barbosa. (org.). Currículo: Políticas e práticas. – Campinas, SP: Papirus, 1999.

_____. A crise da teoria curricular crítica. In: COSTA, Marisa Vorraber. (org.). O currículo nos limiares do contemporâneo. 3. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. pp. 11-36.

MOREIRA, Antonio Flavio e SILVA, Tomaz Tadeu da (orgs). Currículo, cultura e sociedade. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2005.

OLIVEIRA, Zilma Ramos de (org.). Educação Infantil: muitos olhares. – 6. ed. – São Paulo: Cortez, 2004.

RIBEIRO, Márcia Maria Gurgel. Diferentes espaços / tempos da organização curricular. In: ALMEIDA, Maria Doninha de. (org.). Currículo como artefato social. Natal (RN): EDUFRN – Editora da UFRN, 2000. (Coleção Pedagógica; n.2).

SANTOS, Lucíola Licinio Paixão e PARAÍSO, Marlucy Alves. Dicionário Critico da educação. Currículo. Revista Presença Pedagógica, v. 2, n. 7, jan/fev. 1996. (5 pp.).

SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade – uma introdução as teorias do currículo. – 2. ed. – Belo Horizonte: Autêntica, 2005.

_____. O currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. 120p.

TARDIF, Maurice. Saberes docentes e formação profissional. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002.

VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

_____. Pensamento e linguagem. – 3. ed. – São Paulo: Martins Fontes, 2005. – (Psicologia e pedagogia).

ANEXO 1

Tabela 1 – Quadro-síntese do conceito de currículo/proposta curricular apreendido nas entrevistas individuais.

Termos utilizados / Ideias apreendidas
Frequência
Um guia / Orientação/ Caminho/ Norte / Direção 09
Definição de Conteúdos / Programa / O que ensinar 16
Definição de Metodologia / Objetivos / Avaliação / Como ensinar / Pra que ensinar 11
Informações sobre Desenvolvimento

Processo ensino / aprendizagem

08

 

 

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