comunicação Política Política e Cidadania

A Constituição do arroz e do feijão

retratodobrasil

Imprensa

Retrato do Brasil

Em 29 de janeiro de 1987 era publicada a edição nº 1 do jornal Retrato do Brasil. Trazia na sua capa as caricaturas de Sarney e Ulysses e o título: Constituinte – Sarney & Ulysses: o acordo que compromete a soberania.

O jornal em formato standart tinha como diretores, Elifas Andreatto, Eurico Andrade, Fernando Moraes, Flávio Andrade, Hélio Bicudo, Luis Gonzaga Belluzzo, Mino Carta, Nirlando Beirão e Raimundo R. Pereira e mais um time da pesada de colaboradores.

È uma pena que durou pouco, mas deixou marcas e lembranças num momento de transição e mudanças no país.

Para inaugurar esta seção, vamos publicar nesta edição a Opinião do Retrato do Brasil sobre a Constituinte que se instalaria naquela semana.

 A Constituição do arroz e do feijão

Nossas elites endinheiradas, latifundiárias e -multinacionais, empenharam-se por duas décadas a partir do golpe de 64, em remendar a Constituição de 1946, julgada demasiado liberal e permissiva. Acreditavam que as liberdades asseguradas na Carta democrática que substituiu a Polaca do Estado Novo fascista permitiam a agitação sindical urbana e camponesa,o nacionalismo parlamentar esquerdista e a pregação comunista subversiva que paralisavam o ensino, o comércio, as indústrias e as fazendas. Com a “lei” de inúmeros Atos Institucionais, dizendo-se legitimados por uma “Revolução”, seis governos militares tentaram moldar no pais uma nova disciplina, que garantiria um inigualável surto do progresso material.

 

Foram bem sucedidos, em parte. O Brasil é hoje a oitava economia do mundo. Nossa indústria exporta bombas, automóveis, navios e aviões. O vídeo-cassete, o microcomputador e, em maior escala, a tevê a cores, o liquidificador, a geladeira, o rádio e a máquina de calcular espalham-se pelos quatro cantos do pais.

 

Sobreveio no entanto a crise -a principio suportável, como entre 74 e 79; e, depois, brutal como de 80 a 83. No final dessa crise, a campanha palaciana para colocar na presidência um civil articulado com os militares, com o que se completaria o longo processo de distensão e abertura controlada, foi atropelada espetacularmente. Uma campanha oposta, por eleições diretas, de massas como quase nunca se vira na história desse pais, trincou de alto a baixo a estrutura do poder existente e abriu caminho para o governo de transição de Tancredo Neves e José Sarney.

 

Neste domingo, o governo civil cumpre a promessa que lhe deu legitimidade: instala-se em Brasília a Assembleia Nacional Constituinte convocada para tentar resolver o dilema institucional no qual os militares fracassaram -elaborar de ‘forma democrática uma constituição que corresponda aos interesses das forças sociais e políticas que representam as aspirações nacionais.

 

O que explica o fracasso da ditadura, a despeito de todas suas conquistas materiais? Em primeiro lugar, o fato de que o seu progresso excluiu praticamente metade da população do país. Um dado só anula a profusão de recordes na produção de bens de consumo duráveis que constitui o orgulho do modelo de desenvolvimento dos militares: de 1964 a 1984, enquanto a população do país mais que dobrava, a produção de mandioca, arroz e feijão, os principais gêneros de alimentação popular, estacionava nas casas de vinte , nove e dois milhões de toneladas, respectivamente.

 

Além disso, o crescimento apoiado na concentração de renda, num mercado financeiro desproporcional, nos capitais, empréstimos e tecnologia externos encalacrou: sufocado por uma dívida interna que hoje desvia para o pagamento de juros quase toda a capacidade de investimento do Estado, o país mergulhou num pântano e a ameaça de falência cambial.

 

Mudança – esta é a palavra chave para a Constituinte que se instala. O povo espera que a nova ordem jurídica ajude a resolver ainda hoje não resolvida questão da sua sobrevivência material. Na sua simplicidade o povo quer uma carta que também ajude a produzir arroz, carne e feijão. O que o povo quer é resumido com clareza até por seus adversários. Guilherme Afif Domingos, campeão de votos da direita, um homem das elites ligadas ao regime militar, diz que a Constituinte está ameaçada pelo distributivismo que s expressa em “slogans” como “justiça social”, “função social da propriedade” e “nacional”. Para ele, estas consignas são biombos para interesses “menos legítimos”‘ como a reserva de mercado e o fortalecimento da intervenção estatal.

 

Depois de duas décadas de concentração de renda, de fome, de submissão internacional o povo quer, de fato, o que Afif teme: justiça, distribuição de terras e de rendas, proteção da nossa indústria e direito a criar tecnologia nacional.

 

Os conservadores apelam para a pureza aparente de uma Constituição que se traduziria num texto conciso e elegante, como o dos princípios gerais da Constituição americana, que há dois séculos resiste às modificações sociais. Querem uma Carta curta que consagre basicamente a iniciativa privada e a propriedade individual, esquecendo todo o constitucionalismo social do século XX, resultado da ascensão da classe operária e dos assalariados em geral. É por isso que sentem alergias quando ouvem falar em direitos nacionais, distribuição de renda e justiça social. Já os progressistas, mesmo que não tenham forças para redigir ainda uma Constituição de fundo social realmente novo, concisa, elegante e revolucionária querem pelo menos, fixar com precisão, um conjunto de determinações sobre um liberalismo anacrônico, que ainda deve dominar o espírito do texto da Nova Constituição.

 

Os que se assustaram com a movimentação sindical e das entidades populares de 64 certamente não gostarão: mas uma nova Constituição precisa assegurar também mais amplos direitos de associação que os conseguidos nesses dois primeiros anos de transição. Para tanto, é fundamental que os militares não tenham o direito de intervir nas pendências internas racionais. Todo o esforço dos governos militares nesses anos de autoritarismo foi no sentido de restringir a participação popular. No entanto, o próprio desenvolvimento material do pais nesses anos, multiplicou o número de operários rurais e urbanos e de assalariados da classe média em geral. A todos é preciso ouvir e estimular para aprimorar o processo social. Tome-se um esforço extraordinário, como a tentativa de congelamento geral de preços no Plano Cruzado de fevereiro de 86. Por que foi impossível atingir o objetivo tão almejado por toda a Nação? Porque o congelamento de preços não é só um processo técnico-econômico, que se resolve com um Decreto-Lei. Se não existe igualdade e não há uma ampla participação popular, nenhum controle de preços ou qualquer outro controle nacional se mantém.

 

A Constituinte que se instala neste domingo é legítima e precisa ser Soberana, portanto. Os conservadores que não moveram um músculo pela Constituinte nos quinze anos de campanhas das forças verdadeiramente democráticas, alegam hoje que a eleição de 15 de novembro teve uma quantidade de votos nulos tal que a legitimidade da Assembleia convocada está posta em discussão. De fato, esta não é a Constituinte dos sonhos de todos os brasileiros. Nem o povo a conquistou como os americanos e franceses do século 18 ou os nicaraguenses de Sandino poucos anos atrás: com as armas na mão em formidável mobilização. A história de nosso país tem avançado de forma conciliadora, gradual, sem revoluções. A despeito disso, talvez em nenhum outro momento da história nosso povo estivesse tão organizado, esclarecido e mobilizado como está. Quem nega esta Constituinte, está trabalhando para que o povo se afaste dela. Acaba, na prática, preferindo que persista a situação atual, em que o Presidente da República governa por decretos-leis, sobre todas as questões essenciais. A Constituinte, como pretendem seus integrantes progressistas, deve estabelecer como sua primeira decisão constitucional, o fim da Constituição herdada da ditadura militar, o fim do presidencialismo ditatorial que ainda hoje está em vigor.

 

Os Constituintes devem trabalhar sem limites e sem medo. Os conservadores temem que as dificuldades vividas pelo país criem um clima de mobilização e agitação popular tais que deturpem o conteúdo da nova Constituição. Ao contrário, no entanto, as forças progressistas verdadeiras entendem que o povo descobre com mais facilidade as formas a adotar para equacionar seus problemas mais graves quando vive esses problemas e participa ativamente de sua solução. Redigir uma Constituição em época de crise, portanto, não é necessariamente um mal – pode ser uma emulação O que não se pode é permitir que os conservadores isolem a Constituinte daqueles que a vêem como uma esperança de redenção, especialmente as massas mais sofridas do pais, que jamais participaram da elaboração das leis e são as que mais precisam de sua modificação.

 

Deixe um comentário